quarta-feira, 16 de março de 2011

Sobre textos difíceis

Como lidar com textos considerados “difíceis” ? O que fazer diante de uma leitura hermética, que parece não conduzir a lugar nenhum ou que se perde em meandros labirínticos ? A questão é tanto mais premente quanto constato que um número expressivo de meus jovens leitores é, sobretudo, formado por universitários recém entrados na academia e, não raro, ferozes críticos da erudição.

Adoro a ferocidade de jovens universitários. Orgulhosos de seus feitos acadêmicos – que são basicamente limitados, nessa altura, a entrar em uma boa faculdade – acabam usando isso como fundamento “espiritual” e inconsciente para assumir posturas iconoclastas. Meus cabelos brancos e meu suposto pertencimento ao stablishment (embora eu não saiba exatamente qual, além das fileiras humildes do proletariado) acabam por me transformar em alvo de certas investidas intelectuais. Já vi esse filme: cabe a mim desviar-me das pedras arremessadas e tentar levar adiante um debate que, se por um lado nunca dura muito tempo, por outro torna-se interessante justamente devido à fúria iconoclasta juvenil.

Pois eis que, recentemente, em rápido colóquio pela internet (não menos alegre por causa disso), saí em defesa dos textos “difíceis”. Comecei usando a famosa citação de Theodor Adorno segundo a qual a complexidade da realidade faz com que os textos que a descrevem ou tentem entendê-la sejam também necessariamente complexos. Claro que é provocação, pois sabemos que linguagem e mundo são coisas bastante diferentes. (Mas até que ponto ? Longa história). Após uma saudável e inteligente troca de argumentos com meus interlocutores – cuja ferocidade logo deu lugar à serenidade – surgiu um consenso segundo o qual o emprego de uma linguagem “difícil” pode ser perdoado, desde que não seja feito inutilmente (ou seja, quando há alternativas “fáceis”) e nem seja simples exibição de erudição (o que resulta em mera arrogância).

Os consensos me irritam, e a questão continuou me perseguindo mesmo depois do fim do colóquio. Mesmo porque poucos meses atrás, diante da obrigação de ler determinado livro de um “certo” Gilles Delleuze e da minha hesitação em iniciar a leitura do texto, comecei a reclamar longamente sobre a prolixidade e, sobretudo, sobre a aparente falta de sentido de sua escrita. A grande ironia é que eu estava diante de um livro de Delleuze justamente intitulado Lógica do sentido. Fui obrigado a enfrentar e resolver certas questões referentes à minha opinião sobre textos difíceis antes de começar a ler o a tal Lógica do sentido.

A forma como resolvi essas questões me fizeram encarar com mais coragem os “textos difíceis” e me levaram ao ponto de me tornar defensor deles, como por exemplo no recente colóquio citado. O emprego freqüente da palavra “ciência” pelos meus jovens interlocutores me chamou atenção para a forma como lidamos com os textos. Acredito que os que cobram a simplicidade da escrita buscam, acima de tudo, objetividade nos textos lidos. Se um autor pensa de uma determinada maneira, que ele diga claramente o que pensa e pronto. Parece racional, não ? Afinal, tantos autores na “história da ciência” foram simples e claros em suas proposições e argumentos...
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Oras, me pergunto se não haveria uma outra ordem de textos (correspondente a um outro tipo de pensamento), que deva fazer da "dificuldade" sua própria matéria, partindo do pressuposto de que o pensamento não se esgota no texto. Tento ser mais claro: se eu tenho uma opinião e tento transmiti-la, é meu dever ser claro. Porém, se eu parto do princípio que minha opinião não é definitiva – por exemplo, devido à complexidade do tema abordado – tenho a possibilidade de multiplicar os planos possíveis de leitura do meu texto (ou seja, sua complexidade/dificuldade) para que o leitor possa ir além do que fui na investigação do problema proposto. Nesse sentido, um texto passa a se abrir para várias possibilidades de leitura, para muito além daquilo que o autor “quis dizer”.

A analogia que faço é com a pintura. Todos podem ver e apreciar uma pintura figurativa. Há uma infinidade de discursos ou interpretações possíveis a partir da contemplação, por exemplo, de uma Mona Lisa. Porém todos eles devem necessariamente partir do fato incontestável de que se trata de uma mulher parada, vestida de preto e contemplando os observadores com um sorriso discreto. Queiramos ou não, essa é a figura que se apresenta diante dos nosso olhos, e identificamos sua forma porque temos o referencial incontornável da realidade a partir do qual fazemos uma comparação.

Porém, como agir diante de uma tela abstrata ? O trabalho, mental ou interpretativo, solicitado é certamente maior do que no caso de uma tela figurativa. Muitas vezes, o artista sequer imagina o alcance daquilo que vai ser pensado ou sentido a partir da contemplação de sua obra. Uma tela abstrata, assim como textos “difíceis”, representa sobretudo uma abertura para o pensamento, um convite para um trabalho do pensamento que pode ser bastante árduo. da mesma forma, em um texto “difícil” trata-se da possibilidade de “ir além do conceito”, só para citar o velho Adorno ainda uma vez.

Penso também na poesia. O sentido de uma poesia não se esgota no significado das palavras empregadas. Ler uma descrição sobre o rio que passa na minha aldeia pode ser entediante, mas também pode nos levar a verdadeiras sínteses metafísicas. Ou então, para continuar com as metáforas líricas, pedras que surgem no meio do caminho devem ser vistas menos como simples objetos e mais como uma possibilidade de criação de sentido. Quando um texto nos leva a isso, ele certamente cumpriu sua função, tenhamos ou não entendido exatamente o que o autor quis dizer.

9 comentários:

Victor disse...

Elaine (se referindo ao "Bizarro Jerry" e seu novo grupo): "...They read."
Jerry: "I read."
Elaine: "Books, Jerry."
Jerry: "Oh... big deal!"

Marcos Vinícius disse...

A verborragia, definitivamente, não faz parte do meu cotidiano profissional, no qual eu tento me fundamentar, embora eu nem tenha um... As infinitas definições que circundam o jornalismo pedem clareza e concisão, mas, em geral, gosto de dar uma feição monumental aos meus textos recorrendo à prolixidade e me interesso por uma leitura, por assim dizer, desafiadora, pois não é algo automático e exige cautela e um raciocínio de compreensão. Apesar de não ser a leitura ideal para o meu dia a dia, eu a defendo e a acompanho na medida do possível.

Ananda disse...

Um dos problemas que temos ao ler um texto complexo é querer entendê-lo em sua integralidade. 8 ou 80. Acho que um ótimo início é partir do pressuposto de que não preciso de entender tudo.

Pierri disse...

Gian,

Mais uma vez, parabéns.

A multiplicidade das significações de um texto pode ser, como você mesmo disse, pela sucessiva colocação de termos (difíceis ou não) resultando num efeito de sentido anteriormente contornado pelo autor. Observe: contornado.

Mas não só.

A finalidade de um texto é sempre o efeito de sentido; caso contrário o autor não resolveria escrevê-lo. E quando o efeito de sentido tende ao gênero mais artístico da coisa, os elementos que garantem esse resultado se multiplicam.

Elementos gráficos, poesia concreta, marginal.

Vide “Acidente na sala” de Ferreira Gullar.

Vide os autores e suas síncopes, seus ditongos e hiatos, seus autos-beijos na pronúncia, seus sinônimos.

Vide quando sentenças somam sentidos opostos de diferentes raízes e texturas, criando no leitor a possibilidade de tangenciar um novo sentido.

"O navio que em deus na gávea ancorou"/ “a camisa de hidrogênio com que a morte copula” / “canteiros destroçados feito a boca, que disse a esperança”

Empolgado, escrevi furioso.

Mas pelo fato de estar diante de uma geração que rejeita textos e poesias. Que busca resumos de livros, que diz que poesia é sem graça, complicada, ou coisa de maconheiro.

Um forte abraço,

Marcelo Pierri.

barbarafnadaleto disse...

Oi Giaan ^^
Tudo bom?

Concordo com você quando diz que certo grau de "dificuldade" é desejável a um texto artístico ou uma pintura, como em seu exemplo, à medida em que promove uma abertura a diferentes interpretações.
Porém, se usada em excesso, como em alguns poemas barrocos, por exemplo, chega a prejudicar completamente o texto. Fica tão difícil, tão nonsense, que até desestimula a leitura.
Já na literatura acadêmica médica, como no meu caso (e talvez de alguns dos interlocutores que você citou), a dificuldade surge exatamente do oposto. A necessidade de precisão do texto faz com que se utilizem palavras muito complexas. Não se batizou uma camada de células de "sinciciotrofoblasto" (encanei com essa palavra) por mero capricho, mas para deixar o menor espaço possível para dupla interpretação.
Mas para ambos os níveis de dificuldade, a melhor coisa ainda é um dicionário, objeto que tantas pessoas acabam deixando de lado, hoje em dia..

Beijos, Gian!
;*

Fernanda Petrachin disse...

Janjão!
Super adequado este texto a minha nova "vida acadêmica". Estou fazendo Letras e eis que logo no segundo dia, em meio à uma aula de Estudos Clássico, descubro que teria que ler um dos cantos da Ilíada. Até aí, tudo bem. O problema foi que eu não tinha a menor idéia da complexidade deste texto e assim que comecei a ler, encontrei uma imensa dificuldade.
Meu primeiro pensamento foi: Oh Heavens! Vou desistir, Letras não é pra mim.
Mas com o tempo, fui me acostumando com a linguagem e com as imagens transmitidas pelo poeta e hoje, eu até tenho vontade de ler os outros cantos.
Enfim, acho que gostar e compreender textos difíceis é só uma questão de tempo e evolução.

Um beijo, Gian!
Saudades das suas aulas

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vinicius disse...

Uma lógica corporal adaptada a palavras, mais ou menos superficiais, mas ainda sim verdadeiras:
"O que vem fácil, vai fácil."

Acho que a gente vai aprendendo que existe esforço até num texto simples... justamente porque o pensamento não se esgota no texto... nem o seu nem o do autor!

Realmente gosto de blog... mesmo depois de tanto tempo!

Abraços
Gian

Jeff disse...

Ola,professor Gian,fui seu aluno em 2008 e so depois do curso me dei conta de que um dos livros de historia para o ensino medio que tenho ate hoje e de sua autoria em parceria com Claudio Vicentino,bem que me senti familiarizado com sua linguagem em sala de aula. Quanto a textos dificeis,particularmente acho textos reflexivos por si so muito dificeis,principalmente no que se refere a detectar a tematica do texto.Espero aprender bastante com esse blog.Abs