quinta-feira, 23 de junho de 2011

O encantamento do mundo


Havia uma propaganda em um desses canais de TV a cabo da vida – talvez o History – , que mostrava uma moça passeando por uma praia deserta. Lentamente, a imagem da moça ia sumindo e em seu lugar aparecia na mesma praia uma cena de batalha monstruosa, com fuzileiros navais desembarcando sob fogo e morrendo aos montes na areia. Porém essa imagem logo desaparecia e voltava a moça caminhando, ouvindo-se agora o grito solitário de uma gaivota.

Chama-me atenção essa capacidade de encantamento do mundo, ou seja, de dotar as coisas (objetos, gestos, lugares, seja o que for) de propriedades que elas aparentemente não possuem. A memória do passado tem a capacidade de criar encantamento e, na propaganda que descrevi, a simples passagem do tempo se encarregou de transformar a simples praia de um local de veraneio em um lugar cheio de significado. Na historiografia francesa isso é chamado de lieu de mémoire, lugar da memória.

Além do tempo (portanto, além da memória e da história), a linguagem também tem essa capacidade de promover o encantamento, seja através da poesia e literatura, seja através do discurso. Por exemplo, a humilde rua dos Douradores é uma rua como as outras no bairro da Baixa em Lisboa – uma rua até desinteressante se comparada com as outras próximas – , mas foi ali que viveu Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, autor do Livro do Desassossego. No começo do ano, procurando os Correios em Lisboa, perguntei para nossa guia, a doce Idália, onde ficava a agência mais próxima do glorioso Hotel Mundial onde estávamos. “Tem uma logo aqui na rua dos Douradores", ela disse. E perguntou: "Você conhece ?”. Respondi: “Bem mais do que você imagina”, lembrando que minha alma costuma vagar por essa rua mesmo quando estou do lado de cá do Atlântico.


Orhan Pamuk, no seu último romance, Museu da Inocência, constrói uma densa narrativa a partir de objetos (e lugares) recolhidos mais ou menos ao acaso. Não contente em tecer um romance a partir dos objetos, Pamuk efetivamente transformou-os no acervo de um Museu, organizado por ele em Istambul com essa finalidade. O ingresso se dá através da apresentação de um bilhete que vem impresso no livro; na edição brasileira, à página 550.

Finalmente, o tempo compartilhado também tem essa capacidade de criar encantamento. É quando do convívio de um homem e uma mulher cria-se memória, através da associação de objetos a momentos vividos, ao tempo passado em conjunto. O local onde foi trocado um olhar mais significativo ou onde foi dado um beijo mais apaixonado ou simplesmente onde simples mãos dadas expressaram emoções mais fortes, todos esses locais ganham significado e permanecem impressos na memória de forma encantada. Assim, um mísero, sei lá, estacionamento, pode se transformar em um local que jamais voltará a ser visitado sem provocar o assalto da memória.

Quando um homem e uma mulher conseguem produzir encantamento, juntos eles criam mundos. Trata-se de mundos que só têm significado para eles, e que andam entrelaçados com o mundo real, transformando lugares (e objetos e gestos) bobos do cotidiano em lugares enfeitiçados. Mas talvez seja essa a única forma possível de dar realidade a esses lugares frios e funcionais: pode existir algo mais irreal do que um estacionamento vazio com suas paredes de concreto ? A única realidade possível do mundo talvez seja o encantamento. O encantamento dá sentido.

Quando o acaso junta duas pessoas e elas descobrem seu poder de criar mundos e em seguida elas passam a habitar esses mundos enfeitiçados, não conhecendo outro lugar melhor para habitar, então não há dúvida: impossível explicar esse encontro senão pelo seu nome mais grandioso.

3 comentários:

nayla disse...

sarau literário no estacionamento!

ok ok deixa pra lá...

Anônimo disse...

Gian,

Coincidência (ou não), acabei de ler "O amor nos tempos do cólera" e nesse romance de G.G.Marquez há justamente a combinação de um encantamento criado por uma linguagem e por um lugar. Se prestarmos atenção, o encantamento se faz visível quando acreditamos na possibilidade de sua existência, seja ao fechar um livro após terminá-lo, seja ao ler e reler um 'post' que dota (quem diria!) um espaço virtual de significado.

Lindo, professor ;)

Marcos Vinícius disse...

bem legal esse texto, curti muito. Tem um pouco a ver com as ideias do universo simbólico de Bourdie, em cujos espaços o indivíduo se situa e, a partir dele, atribui-lhe valores e significados só compreensíveis dentro do próprio universo.

Mais uma vez você me surpreende com a sua seleção lexical e organização de ideias, é uma coisa que eu admiro em você.