domingo, 29 de maio de 2011

A balada de Helmwig

(no intuito de entreter os alegres leitores do blog, inauguro hoje um Folhetim, cuja continuidade é bastante duvidosa. Apesar da pesquisa histórica rigorosa, os fatos aqui narrados e os personagens citados são todos fictícios. Ou não, porque essas coisas, no fundo, a gente nunca sabe.) (trilha sonora: http://bit.ly/jdZH1m )


O grande Simonbert

Nossa história começa na época das grandes migrações, quando Simonbert atravessou o Reno e vagou por alguns anos pelos territórios do antigo Império. Seus olhos viram coisas que jamais iria esquecer: cidades em ruínas, povos em fuga, a fome fazendo seus estragos. Mães degolaram os filhos, e com seus corpos saciaram a fome. Diante de tanto sofrimento, o jovem Simonbert chorava, mas seu coração endurecia. Entrou em contato com a doutrina do homem na cruz e mesmo sem se converter passou a crer na sua mensagem de paz, sem no entanto descuidar da prática da guerra.

Simonbert tornou-se um grande guerreiro, mais por necessidade do que pelo gosto. Em pouco tempo, sua habilidade com as armas ficou conhecida, manejando com igual competência a espada e a maça, o martelo e a lança. Alguns guerreiros, provenientes de outros povos, passaram a segui-lo e certa ocasião, após sangrenta batalha, os bravos de Simonbert tomaram o castelo de Thamandor, que se tornou sua residência permanente. Das terras vizinhas vieram os camponeses, humildes, trazendo presentes e explicando os costumes da terra.

Thamandor prosperou. Seus guerreiros eram os mais habilidosos da região, fazendo incursões à cavalo pela Raetia e Panônia , navegando até a Mércia e Anglia. Partiam para fazer a guerra na primavera, retornando no outono com suas listas de territórios atravessados e castelos saqueados. Após a leitura das listas, realizava-se a maior festa do ano, com o sacrifício de bois e ovelhas, além de iguarias trazidas de longe e jarras de hidromel à vontade. Simonbert, ele mesmo participante de várias incursões, contava com o apoio e fidelidade de seus homens, e freqüentava alegremente as assembléias de guerreiros, tanto em torno da grande mesa do salão de Thamandor quanto em volta das altas fogueiras nos acampamentos de guerra.

E Simonbert acabou tornado-se rei, muitas vezes concedendo feudos a seus guerreiros. Mesmo assim, estes ainda frequentavam as assembléias, onde conversavam sobre seus feitos, trocavam suas experiências e prestavam homenagem ao maior de todos eles, Simonbert. Um dia, o rei passou a medir a habilidade de seus guerreiros através das orelhas cortadas de cavaleiros inimigos abatidos. Duas vezes por ano, Simonbert recebia gordos sacos de estopa cheios de orelhas, com os guerreiros recebendo os prêmios ofertados pelo rei para quem atingisse as maiores marcas. Foi quando Zydguell, que soltava fumaça pelas ventas, trouxe pela primeira vez um saco com 93 orelhas. Anos depois, Usbengar, que era bravo como os lobos, atingiu a marca de 95 orelhas. Finalmente, o bardo Marcylbert, que andava com o alforje sobre os ombros, começou a trazer 98 orelhas em cada saco.

O pequeno Helmwig

Pobre Simonbert, que jamais teve um herdeiro à sua altura. Seu filho, o pequeno e taciturno Helmwig, bem que tentou. Após alguns anos de treinamento formal, que incluíram uma viagem aos locais sagrados do Oriente, Helmwig passou a freqüentar as reuniões de guerreiros, sob os olhares suspeitos de Simonbert que não confiava na forma como o filho manejava a espada. Certo dia, após uma reunião em que Helmwig se gabava de sua habilidade e das mudanças que faria quando assumisse o lugar do pai – de acordo com o costume do reino –, Simonbert perdeu a paciência. Chamou sua atenção na frente dos guerreiros e disse:

– Você não está preparado para sentar-se à essa mesa. Venha, dê-me essa espada, farei melhor em guardá-la para você.

Cabisbaixo diante de tal humilhação, o pequeno Helmwig não teve coragem sequer de encarar os guerreiros que, com honra, não expressaram sua satisfação íntima de vê-lo derrotado e preferiram ocultar qualquer sorriso de escárnio diante daquele que, um dia, por bem ou por mal, ainda viria a ser seu rei. Para completar a humilhação, Simonbert ainda acrescentou:

– Vá. Vá ter com as mulheres, talvez elas lhe ensinem algo antes que você possa ter o respeito de todos.

Durante longos invernos, Helmwig vagou desapercebido pelos salões e terraços de Thamandor. Esteve com as mulheres, que o acolheram com simpatia. Elegeu como preferidas Angelred, que fazia contas como ninguém; Elanfled, que chefiava todas as outras e Hosarwid, que veio das altas montanhas e acreditava no deus como outrora acreditara no demônio. Nesse tempo todo, o pequeno Helmwig – sempre acompanhado de Milwin, o eunuco – ouvia o ruído infinito das conversas femininas e presenciava suas intrigas, participando delas como juiz supremo. Lentamente e sem saber, Helmwig passou a ter o gosto da conversa, porém sempre diante das mulheres e calando-se ou desaparecendo silenciosamente quando da aproximação de um guerreiro, praticando diante deles o silêncio hesitante e se escondendo, desconfiado, por trás da falta de ação

O reinado de Helmwig

A morte de Simonbert foi chorada por todos, mulheres e homens, tanto guerreiros como camponeses e clérigos. Para evitar uma luta interna, respeitou-se o costume da terra, e Helmwig tornou-se rei. De imediato, construiu uma sala do trono em Thamandor, alguns andares acima do salão onde se reuniam os guerreiros e próximo dos aposentos das mulheres que tanto lhe inspiravam confiança. Mandou dizer aos guerreiros que continuassem com suas campanhas de verão, que mantivessem o ritual das listas e que as orelhas decepadas continuariam sendo premiadas. Mas ele, Helmwig, jamais desceu à assembléia ou confraternizou com os guerreiros, para quem sequer conseguia olhar. Diziam até que ele se aconselhava com as mulheres. Pois em cada guerreiro Helmwig via uma sombra de seu pai e de sua humilhação na juventude. Em cada audiência ou conversa fortuita com um guerreiro, Helmwig mostrava sua insegurança.

Com o tempo, aprendeu a falar com os guerreiros, descobriu que o simples uso da coroa poderia provocar respeito. Por medo de ser humilhado e para não ter que ouvir a voz dos guerreiros, Helmwig passou a tecer uma fala ininterrupta. Entrevistas de quinze minutos acabavam sem que o guerreiro solicitante pudesse balbuciar uma ou duas palavras.

Ao mesmo tempo, Helmwig começou a mandar habilidosas embaixadas para territórios distantes, oferecendo proteção aos povos de longe. Vários senhores em vastos territórios, mesmo os mais afastados, todos conhecedores da força bélica dos guerreiros de Thamandor e temerosos de uma conquista, submeteram-se em vassalagem, configurando os Novos Territórios do reino. E aquilo que era um reino acabou se tornando quase um império.

Vinte anos após a passagem do cometa, iniciaram-se as incursões dos saxões, que passaram o ocupar os velhos guerreiros bem como uma nova e habilidosa geração de combatentes que já surgia à sombra da antiga. Enquanto os saxões eram derrotados, e pilhas cada vez maiores de orelhas eram coletadas, Helmwig desviava seu olhar para os Novos Territórios vassalos e suas riquezas aparentemente fabulosas. Foi quando teve a idéia de reforçar o império que se formava enviando os velhos guerreiros para instruir jovens cavaleiros em todos os Novos Territórios vassalos. Convocou uma reunião e, com empáfia, desceu para falar com os guerreiros reunidos em assembléia. Tomou a palavra, como de hábito sem aceitar interrupções, e falou da importância de reforçar os Novos Territórios para mantê-los, pois a disputa com outros reinos era intensa. Sugeriu que alguns dos velhos guerreiros passassem temporadas nos Novos Territórios, com a finalidade de adestrar os mais jovens.

– É do interesse de todos, é até um pedido que os guerreiros dos Novos Territórios nos fazem. Eles querem ser instruídos, saber como manejamos as armas e como nos preparamos para a guerra.

Em seguida, Helmwig começou a indicar as atribuições de cada guerreiro. Foi quando Grimann, que volta e meia trazia 100 orelhas de suas incursões, ergueu-se e ousou interromper a fala do rei:

– Posso estar enganado, mas não convém nos afastarmos do litoral quando a cada ano os saxões batem à porta. Se eu partir para Linz, no Danúbio, para onde me pretende enviar, e receber a notícia de que os saxões mais uma vez desembarcaram, terei que voltar às pressas. Chegarei exausto, assim como meu cavalo, e terei dificuldade para executar a atividade de guerreiro que sempre tão bem desempenhei.

Nesse momento, Helmwig se transformou. Vendo-se contestado e sentindo-se ameaçado, Helmwig sentiu a sombra do pai passando mais uma vez pela sua frente. Transtornado, gritou, feito uma criança:

– Sabe o que eu penso de você, na verdade, Grimann ? Que você tem medo ! Que você tem medo de encarar os guerreiros de Linz. Você tem medo que eles saibam que você não é tão melhor que eles assim... medo ! Medo !! MEDO !!!

E assim termina a triste história do pequeno Helmwig.