quarta-feira, 4 de maio de 2011

Tentando entender (e me divertindo enquanto isso)



Sem dúvida, o mundo da Guerra Fria era bem mais fácil de entender. Na época existiam dois blocos, duas ideologias, duas visões de mundo, e se você escolhia uma, a outra tornava-se inimiga. A ética subordinava-se a escolhas que eram bem mais do que simplesmente ideológicas: ser de esquerda implicava em abraçar a causa da Humanidade, que tudo justificava, ser de direita significava combater a possibilidade do totalitarismo, que tudo massacrava.

Poucos antes da Guerra Fria, o presidente norte-americano Franklyn Roosevelt teria dito uma frase que exprime bem o universo de valores que logo se tornaria predominante. Falando sobre o ditador anti-comunista da Nicarágua, Anastasio Somoza, que ainda sobreviveria no poder por longos anos, Roosevelt disse: “Somoza may be a son of a bitch, but he's our son of a bitch”. Na importa o que você faça, o importante é jogar no time certo.

No Brasil, a situação era mais clara ainda. Havia a ditadura, e tudo se justificava diante do primado de combatê-la. Ou então, em um registro um pouco mais sinistro: haviam os “terroristas” de esquerda, e tudo se justificava para enfrentá-los. Tal postura refletia-se no cotidiano. Meu amigo mente... tudo bem, ele é de esquerda. Meu colega rouba... tudo bem, ele é anti-comunista. Após o final da luta armada, lá por volta de 1975, os radicalismos se abrandaram, mas a ética permaneceu dissolvida: não importavam os atos que se cometiam, mas a bandeira que se desfraldava.

Imagino que em certos casos viver ou crescer nesse mundo acabou gerando um, digamos, deficit ético. Pior ainda se levarmos em consideração que a geração que foi jovem nos anos 1970 teve em seguida que encarar as assim chamadas décadas perdidas de 1980 e 1990, talvez o pior momento da história econômica do Brasil em todos os tempos. As oportunidades de trabalho minguavam, as remunerações eram irrisórias e, durante muito tempo, a inflação devastadora. O clima generalizado de “salve-se quem puder” era deprimente. Diante da dura luta pela sobrevivência, os valores foram mais uma vez chacoalhados: tenho filhos para alimentar, pais idosos para cuidar... vou lá me preocupar com detalhes ? Abre logo o caixa dois. Fraude no imposto de renda. Caixinha. Esquemas. Foi a instauração generalizada dos fins justificando todos os meios. Agora, não era mais o caso de salvar a Humanidade ou enfrentar a barbárie: tratava-se de continuar vivo. Talvez o maior símbolo da época tenha sido o Plano Collor: em nome do combate à inflação, vale tudo, portanto que se confisquem as contas bancárias !

Cheguei tarde para luta contra a ditadura. Quando comecei a pensar no mundo para além do quintal de casa, o AI-5 já havia sido revogado. Meu “combate” se limitou a uma participação rápida no comício das Diretas-Já na Praça da Sé. O do Anhangabaú ? “Ah, vai estar muito cheio...”. (Mais tarde, teria fôlego para vaiar o candidato Collor em praça pública e, pela primeira vez, levar um spray de gás lacrimogêneo na cara). Porém, tive que encarar as décadas perdidas. Comecei a trabalhar no final dos anos 1980 e jamais esquecerei que com todo o meu impressionante primeiro salário, comprei um livro. Repito, um livro (o Drácula, de Bram Stoker).

Na época, diante de tais circunstâncias, deslizei na ética uma ou duas vezes (quem sabe três etc...). Porém, acredito que há pessoas que passaram por esses tempos sombrios e carregam um deficit ético até hoje.

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Dia desses identifiquei um comportamento bem pouco virtuoso em um Dinossauro sobrevivente da Guerra Fria. Ao denunciar certo procedimento duvidoso, tive que ouvir uma reação furiosa que começou com: “Puxa Gian, isso é patrulha ideológica, você está pior que a ditadura !” A frase saiu assim, de chofre, transbordou do inconsciente como verdadeira revelação: diante de fraqueza ética, desfraldaram-se bandeiras ideológicas, na tentativa de delimitar campos políticos para desqualificar o interlocutor. Insisti na argumentação serena (ok, fui irônico pra cacete), e ouvi em seguida: “O que você quer, tomar meu dinheiro ?”. De repente, o meu comentário técnico (vá lá, em tom de denúncia), provocou o medo da perda de meios de sobrevivência. Percebi que aquela conversa estava começando a provocar uma reação catártica.

Para encerrar, lá pelas tantas o Dinossauro me disse mais uma frase reveladora: “Pega essa sua ética e enfia no c. !” Nesse momento, dei um drible no esprit de l’escalier e respondi: “Bom, se eu enfiar a sua, não vai nem fazer cosquinha !”.

6 comentários:

Will disse...

Nomes Gian, eu quero nomes. O barraco atrai multidoes assim como a tragedia!! Quem era o dinossauro, onde estavam, oq faziam, oq rolou depois? =D
Na epoca do Collor eu era um pirralho e o gremio da minha escolinha mandava a gente ir pra Paulista protestar(metade ia pra paulista soh pra fugir da aula e outra metade ia pra casa(eu)). Eu desisti do Brasil ha tempos, nao consigo me engajar em nada politico e algumas cisas eu condeno(greve de medicos, passeata contra violencia - ja viu algum ladrao nao matar pq tem uma passeata?, campanha do desarmamento etc)
Enfim...QUERO NOMES

Mariane disse...

não sei se existe alguma ideologia perfeita, mas ficar se escondendo atrás de uma ideologia e julgando todos do mesmo jeito, pra mim, significa estar na caverna de platão, as sombras são só diferentes, mas ainda assim são sombras
tem gente que acha que fazer parte de algum tipo de "contracultura" é ver a verdade, e acabam sendo tão cegos quanto qualquer conservador direitista...

agora, patrulha ideológica? pior que a ditadura? tomar o dinheiro dele(a)? isso sim que é mania de perseguição hem! ou falta do que falar...
Adorei sua resposta!

Unknown disse...

Quem nunca deslizou na ética, afinal?
Quem nunca o fez, não experimentou viver, ou é incapaz de discernir atitudes.Vive enclausurado, sem contato com a realidade.Pode ser ainda um felizardo, porque não passou por adversidades.
O caso curioso, é que o Dinossauro, usou argumentos de ideologia, mascarando seus atos, para (tentar) sair ileso.Revela no fundo, aquilo que ele quer mais que tudo, esconder.E você, Gian foi lá "ajudar" a deixar tudo isso mais transparente.Atuando serenamente(claro!).

Anônimo disse...

oi
te sigo

http://rgqueen.blogspot.com/

Daniel disse...

Adoro seus posts!!

Clarice Tambelli disse...

déficit ético: procurei por vezes um termo para expressar exatamente isso. hahaha

Outro ponto: O excesso de tolerância (ou a aparência de tolerância) do tal mundo globalizado também é frequentemente utilizado como justificativa a esses desvios da ética.

'Ah, mas faz parte da cultura brasileira ser político corrupto, vamos tolerar'


Ética, diferenças culturais e tolerância não podem ser assim confundidos.