terça-feira, 12 de julho de 2011

Para onde vamos ?

É da natureza do segredo que uma separação deva acontecer: uma ou mais pessoas devem permanecer afastadas de um acontecimento ou informação. Certamente muitos já intuíram a mesma origem das palavras segredo e segregação, palavra que tem um sentido odioso. Na verdade, ambas originam-se do latim secernere, que significa separar, por de lado, esconder, e que também deu origem à palavra secessão. Se você quiser enlouquecer, vá ver como o verbo latino secernere originou-se a partir dos tempos verbais do grego κρίνω (kryno).

O segredo, enquanto separação, pode ser obtido através da mentira, e isso é o que eu costumo chamar de produção ativa de segredo. Um sujeito, plenamente consciente, toma a decisão de dizer algo que não corresponde à realidade, criando assim um obstáculo à apreensão do real. Tal iniciativa é bastante eficiente, não só por produzir efeitos imediatos mas também, quando do desvendamento da mentira, por possibilitar a emissão de juízo: aquele que mentiu falhou com a ética, a descoberta da mentira torna o deslize evidente. Diante da mentira desvendada o mundo permanece inteligível e o universo de valores inalterado: cabe apenas perdoar ou não o mentiroso.

[Momento desabafo: os que me lêem e me conhecem pessoalmente frequentemente observam que a rigidez ética dos meus escritos não tem muito a ver com os atos da pessoa real que escreve. Pouco importa. Considero os valores elevados que enuncio como um ideal, e acredito neles sinceramente. Uma vez que não ambiciono nem a perfeição nem a santidade, sei que falhei e ainda falho e, no caso, choro lágrimas de sangue cada vez que lembro as vezes em que minhas mentiras provocaram segredo, segregação, separação.]

O segredo também pode ser obtido através do ocultamento, e isto é o que chamo de produção passiva de segredo. A falta de uma informação ou a omissão de um detalhe podem criar o segredo, principalmente quando acompanhados de algumas verdades próximas e evidentes. Nesse caso, ao invés de escolhas éticas claras, somos colocados diante da zona nebulosa da incerteza. Quando se estende um véu sobre o real, o que está por trás pode permanecer muito bem oculto. Mas o próprio véu acaba se tornando visível e muitas vezes, mesmo quando não existe nada por trás do véu, surge a pergunta: por quê foi estendido ?

Há, porém, uma dimensão bastante atraente o segredo, e que tem a ver com a forma surpreendente com que ele consegue, às vezes, criar aproximação. Falo aqui do segredo compartilhado, principalmente quando se dá no universo das relações amorosas, onde o segredo pode ter um estranho poder de atração. Amantes secretos, encontros secretos e desejos secretos criam um universo de erotismo que, para alguns, seduz bem mais que a certeza das relações estabelecidas e do sexo cotidiano e regular. Nesse caso, trata-se do segredo a dois que, por criar cumplicidade acaba provocando aproximação.

Separados do real, os amantes cúmplices – secretos ou já não mais secretos – constroem um mundo à parte, ao mesmo tempo isolado e melhor do que o mundo real.

6 comentários:

Alberto T. N. Incao disse...

Estou pasmo com sua habilidade com as palavras. Dificilmente um texto me faz refletir desse jeito.
Já estou com saudades de suas aulas Gian.

Unknown disse...

Você escreve e provoca sensações em quem lê. Magnífico.

Gian disse...

Inspiram-me os tempos.

Ygor Valerio disse...

Gian,

Muito bacana!

Seu texto me esclareceu racionalmente um fato que eu só percebia intuitivamente: quando a outra parte de uma relação, seja essa relação uma amizade ou algo mais complexo, deixa de compartilhar a sua vida, discutindo com o outro as suas idéias, contando acontecimentos relevantes, angústias, tristezas, etc, inicia-se um processo de segregação que, no mínimo, criará uma relação em que as partes, ainda que juntas, estão sozinhas. É como se a vida de cada um (a verdadeira vida, que acontece também internamente) passasse a ser um segredo, ainda que não declaradamente.

Inícios de relacionamentos são marcados por uma troca intensa de informações, aquela vontade enorme de compartilhar tudo, o que acaba criando um rico espaço comum de referências, habitado pelas partes dessa relação. Já o oposto disso, quando não há mais troca, é a completa ausência de um espaço que possa ser co-habitado, isolando as pessoas que se relacionam.

Sou contra os "assuntos proibidos" no relacionamento, aqueles sobre os quais não se conversa por medo do conflito que eles geram. Acho que esses conflitos devem ser travados até que se atinja um consenso, sob pena de, multiplicando-se sem solução, afastarem as pessoas em definitivo.

Não estou sugerindo uma simbiose - a individualidade é indispensável e seu soterramento pode, pelo outro lado, estragar uma relação. Sugiro, sim, uma irretratável comunicação dessa individualidade, para que as individualidades possam, declaradas, conviver juntas.

Gian disse...

"Uma irretratável comunicação dessa individualidade...", acho que vc foi direto ao ponto. Mas às vezes essa comunicação falha, erguem-se os famosos véus, e cada ocultamento torna-se uma punhalada: a primeira acaba cicatrizando, a segunda é capaz de sangrar lentamente até a morte. A terceira já encontra um cadáver.

Meu antídoto contra isso é valorizar a construção do que vc chamou de "espaço a ser co-habitado", que só deixa de existir quando somos omissos. Podemos construí-lo, por exemplo, acordando todo dia com um pensamento: "devo conquistá-la(o), hoje como ontem e amanhã". Quando o desejo de conquistar a pessoa amada deixa de ser um imperativo do cotidiano, as coisas começam a andar mal. Quando ele existe, pode tornar desnecessário o erguimento de véus. Ou não.

(Estamos nos tornando menininhas, Ygor. Conversamos sobre "relacionamentos")

Ygor Valerio disse...

Ecco! De bluezeiros a borralheiros....