sexta-feira, 15 de julho de 2011

Pairando no ar



Nunca dei muita bola para o Circo, cuja “magia e encanto” jamais me seduziram, talvez porque sempre cercados de uma pobreza atroz. Muitos vêem nessa pobreza uma certa expressão da “autenticidade” do espetáculo circense, enquanto que eu sempre a vi como aquilo que realmente é: pobreza mesmo. E aqui não falo da pobreza material do circo precário, mas da pobreza de conteúdo de suas atrações.

Mesmo criança, as piruetas e fanfarronices dos palhaços me tiravam poucos sorrisos, se é que algum. Como é que alguém acostumado com boa literatura ou boas comédias ou bons roteiros pode se deixar levar pelo humor de palhaços mambembes sem recorrer a uma dose imensa de boa vontade ? Quanto aos malabaristas e suas habilidades com pinos de boliche ou bolas coloridas ou tochas de fogo, sempre me remeteram ao universo de uma existência precária, por exemplo, aquela que se leva nos cruzamentos de avenidas das grandes cidades.

Os animais de circo representam um espetáculo deprimente à parte. Não é necessário ser um amigo dos animais ou defensor radical da natureza ou mesmo um vegetariano ético para sentir o mal-estar provocado pela visão de jaulas claustrofóbicas, pelo estalar dos chicotes ou pelo adestramento de elefantes à base de choques elétricos. Isso para não falar da falta completa de sentido que há em condenar um leão – animal da savana por excelência – a levar uma vida on the road, encarapitado numa minúscula gaiola na caçamba de um caminhão fedendo a diesel.

Porém, há um momento no espetáculo circense que sempre me chamou a atenção, que é a parte final do número dos trapezistas. É quando as redes de segurança são desamarradas, e aquele conjunto de piruetas aéreas ganha uma tensão aparentemente de vida ou morte. Anuncia-se uma manobra ousada, algo como um duplo ou triplo salto mortal, rufam os tambores e o trapezista põe-se em movimento, sabendo que um erro qualquer fará com que se arrebente no chão.

Quando as redes de segurança são desamarradas, a manobra do trapezista ganha um novo sentido, carregada de tensão e capaz de modificar a própria forma de percepção do movimento. Na hora em que o corpo salta no ar e por um instante fica imóvel, o tempo parece suspenso e esse momento como que se eterniza. As forças que movem os corpos, como a gravidade, também são suspensas e assim, a relação com o espaço deixa de ser a habitual. Além disso, a manobra do trapezista pede a confiança do seu companheiro, que deve saber estender as mãos no momento e local exatos, para que o corpo em movimento seja acolhido. Nesse segundo tempo da manobra, a sensação é sublime: ocorre uma nova suspensão do tempo e do espaço e tudo parece se imobilizar ou eternizar quando mãos estendidas se tocam e se apertam fortemente. Os movimentos se complementam, dois corpos passam a ser um. (Será que os trapezistas sorriem quando estão concluindo a manobra ?). Enquanto isso, lá embaixo, o chão permanece à espreita, ameaçador.

Quando dizemos para alguém “Eu amo você”, é como se todas as redes de segurança do mundo fossem desamarradas. Mas elas já não importam mais.

12 comentários:

Gian disse...

Imagem copiada – sem pedir – do blog de um certo Gabriel Montenegro, que aparentemente a desenhou. Fica o crédito.

Anônimo disse...

Quando dizemos "Eu amo voce," nao so as redes estao desamarradas, mas tambem precisamos do/a outro/a trapezista para estender as maos na hora certa, para nos segurar...e naquele momento, realmente, o tempo para.

Du Sassaki disse...

Sensacional seu texto Gian! Não sabia que além de ótimo professor você era um belíssimo escritor! =) Parabéns!

Mariana Pessoa disse...

Belíssima conclusão... E ótima parábola.

Mariane disse...

e o risco da gente cair no chão e se esborrachar é enorme...

Caroline Dias disse...

Nunca vi também essa mágica no circo pois tudo sempre me cheirou a enganação. Mas é fato que tiradas as redes, no circo e na vida, ficamos tão impossívelmente frágeis que muitas vezes a vontade é de recuar um ou dois passos e desistir. Não cheguei a ver malabaristas se renderem ao pânico da falta de redes, mas as palavras, essas sim, voltam todos os dias, se recusam a sair. E o medo de cair destói muitos dos nossos futuros possíveis. Talvez porque a integridade física seja muito mais fácil de arriscar do que a sentimental ou o próprio orgulho.

texto incrível como sempre, Gian.

Daniel disse...

UAU!! Texto incrível!

nayla disse...

gian, quando vi a ilustração dos trapezistas logo lembrei de um desenhista que muito me agrada e tem os traços parecidos
dica!
http://portroche.blogspot.com/

bobby* disse...

JANJÃO QUERIDO PROFESSOR!

Enquanto estudava as teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin, li o fragmento numero IX, no qual ele cita um tal quadro .... DE QUEM EU LEMBREI? =)))


abraaaaçoo de seu aluno anglo T. do ano passado e agora da UFPR- Direito (agora em greve :( - (Bob)

saudade.

LarimbA disse...

"Como é que alguém acostumado com boa literatura ou boas comédias ou bons roteiros pode se deixar levar pelo humor de palhaços mambembes sem recorrer a uma dose imensa de boa vontade ?" Esse seu comentário é que é deprimente

Gian disse...

Eu era uma criança enjoada. E isso acabou me tornando um adulto pouco disposto a fazer concessões culturais. Não lamento.

Cold Heart disse...

Não sei se foi o texto em si, se foi a leitura ao som de Romanza - Larguetto, mas... Damn onions!