quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Terceiro Aniversário



Lá pelas tantas, em Apocalypse Now, ouve-se a voz do coronel Kurtz (Marlon Brando), em uma gravação interceptada pelo exército americano: “Eu vi um caracol se arrastando pelo fio de uma navalha. Esse é meu sonho... e meu pesadelo. Arrastar-me pelo fio de uma navalha e sobreviver”. A imagem é perturbadora, e foi considerada um dos indícios da insanidade do bravo coronel. (A cena ocorre logo no início do filme, quando ainda ecoam na cabeça da platéia os acordes da música da abertura e a voz de Jim Morrison cantando The End)

Imagem semelhante aparece em uma parábola de Kafka: no meio de um caminho apresentam-se dois adversários, um persegue o caminhante enquanto o outro barra o seu caminho. O que vem por trás na verdade o ajuda na luta contra o da frente, pois que o empurra; enquanto o da frente faz o mesmo, pois o segura. Mas a luta é apenas teórica, pois há um terceiro oponente, o próprio caminhante. Quem sabe, na verdade, quais são suas verdadeiras intenções ? Estaria ele, mesmo esmagado, favorecendo um dos adversários ? Em um momento imprevisto o personagem sonha – “e isso exigiria uma noite mais escura que jamais o foi nenhuma noite” – pular para fora da luta e tornar-se juiz dos adversários que se enfrentam. Na leitura de Hannah Arendt, o salto para fora da luta é uma operação do pensamento, a busca do entendimento que é a única forma de conciliação do homem com o mundo, de evitar que sejamos esmagados.

Lembro da descrição de Nietzsche do espírito livre, como uma corda estendida entre o Homem e o Além-do-homem (Übermensch), e trata-se de uma corda estendida sobre um abismo. E lembro também do famoso texto de Benjamin, ao qual sempre retorno, sobre o Anjo da História (e aproveito para antecipar o aniversário do blog, que começou em setembro de 2008 com o nome de Angelus Novus): trata-se de um anjo empurrado irremediavelmente para frente, mas que não consegue deixar de encarar as ruínas ou fragmentos do passado que são deixadas para trás conforme o vento do progresso vai soprando. Trata-se da interpretação de um quadro de Paul Klee, que mantenho ainda como decoração desta página, no alto, à esquerda.

As situações todas se parecem, pois colocam em cena um limiar e tentam expressá-lo através de imagens. O limiar só existe quando se empreende um movimento, que só pode ser o da busca do sentido. Essa busca é a própria justificativa da existência do blog que, nos últimos 3 anos, sempre procurou o entendimento e mesmo em seus textos mais leves nunca abdicou da busca do sentido.

Limiar. A caminhada rumo ao sentido. O risco de desabar e descobrir que simplesmente não há sentido.

No próximo dia 15, o blog completará o terceiro aniversário. Em crise, como se percebe pelo seu mais longo silêncio. Agradeço a todos os alegres leitores, que continuaram acessando esta página mesmo sem nenhuma atualização. E dedico esse terceiro aniversário a D., que tem me ajudado a seguir em frente nos últimos meses, não importando a lentidão do caracol, a força dos adversários, o tamanho do abismo ou os fragmentos do passado.

2 comentários:

Daniele disse...

"Sejam médicos mas não sejam burros!"

Gian só os seus textos pra me salvarem de tanta babaquice que eu ouço na faculdade. Acessar o blog, me deparar com um novo texto e com uma nova reflexão me faz acreditar q não é só de babacas q é feito o mundo.
Saudades Gian!

Natalia disse...

Olha! Poderia até fazer um bolinho pra levar na quinta, mas minhas experiências culinárias são um tanto desastrosas. Acho melhor não.
Já que os agradecimentos estão em alta essa semana, MUITO obrigada Gian por ter iniciado e mantido esse espaço onde, além de propor reflexões que tanto nos ajudam no nosso processo de descoberta (do mundo, de nós mesmos, etc.), você divide conosco cultura, algumas risadas e até nos (me?) ajuda na convicção de que terapia realmente é superestimada. haha
:)