Guy Debord é um “pensador radical
francês”, e esse rótulo significa muitas coisas, para o bem e para o mal. Lendo
seus textos encontra-se, por um lado, um pensamento que busca caminho sem
concessões – como é próprio do pensamento radical – e, sendo assim, capaz de
desvendar camada após camada de sentido sob a superfície da realidade. Por outro lado, trata-se de um autor que possui
uma vaidade imensa, e acaba criando categorias analíticas que desqualificam não
apenas qualquer crítica ao seu pensamento como também solapam o seu próprio
raciocínio. Entramos no reino das aporias, como aquela que se encontra no Comentário sobre a sociedade do espetáculo:
“Qualquer crítica ao espetáculo converte-se automaticamente em espetáculo”.
Exceto, claro, a sua própria crítica. E que atire a primeira pedra quem não
lembrou de Foucault e da crítica às práticas discursivas no trecho acima.
Costumo chamar essa modalidade de
pensamento de “radicalismo bolha”, e uso a gíria antiga – “bolha” – para tentar
deixar bem claro: não dá mais. Nas trincheiras de 1968, essa vaidade toda tinha
alguma razão de ser, mas deixou de ter sentido desde a confissão feita pelo
próprio Foucault, já doente, em uma de suas últimas entrevistas nos anos 1980.
Falando sobre a solidão, deixou escapar: “No fundo escrevemos porque queremos
ser amados”.
Todavia, fazendo os devidos descontos,
não abro mão da proximidade com o pensamento radical: longe de converter textos
em Bíblias e autores em ídolos, tento preservar a lucidez de seus escritos e a
força de seus argumentos. Como é o caso de Debord e do Comentário. Caracterizando a sociedade do espetáculo, Debord fala,
dentre outros aspectos, da vida vivida em um estado de presente perpétuo.
Submetida às normas “espetaculares”, a personalidade é suprimida, e a
possibilidade de conhecer experiências autênticas, abortada. Daí a
impossibilidade de descobrir preferências autênticas, com a fidelidade tornando-se
sempre cambiante, fundada em uma série de adesões temporárias e “constantemente
decepcionantes a produtos ilusórios”. No presente eterno, a história é abolida
e o acontecimento se subordina a narrativas inverificáveis, estatísticas
incontroláveis, explicações inverossímeis e raciocínios insustentáveis.
Penso em Debord em meio às reuniões
formais do mundo corporativo. Há uma racionalidade aparente por trás das
decisões tomadas em benefício dos “acionistas”, mas a aparência se dissolve em
meio a narrativas inverificáveis. Os acontecimentos aparecem como prontos, e as
decisões tomadas a partir daí apoiam-se em estatísticas incontroláveis. No
mundo do mercado, existe o presente eterno, uma vez que o futuro é reduzido ao
momento em que os lucros serão realizados: é essa diretriz vaga que informa os
acontecimentos do presente. Ao mesmo tempo, o passado não existe, uma vez que
qualquer análise do comportamento dos mercados de ações nos últimos anos só
permitiria uma conclusão: vamos cair fora daqui. A bolha vai explodir, o
mercado vai quebrar, há pessoas cujos lucros não serão realizados jamais. Mas
pouco importa, pois ainda tenho a chance de ganhar o meu antes do sistema
explodir, o que fatalmente vai acontecer novamente. E depois de novo. E de
novo.
As explicações são inverossímeis (“há
unanimidade entre os profissionais de que isso deve ser feito”) e os
raciocínios insustentáveis. Recentemente, em reunião corporativa, ouvi a
decisão que certo tipo de atividade (profissional específica) deve ser feita
através de vídeo, e não mais com textos escritos: “Estamos no século da imagem,
portanto, vamos abolir os comentários escritos”. O “portanto” aqui é uma
conjunção que une duas proposições dando ideia de causa e efeito. Porém, não há
fundamento para unir essas duas proposições, o raciocínio é insustentável.
“Estamos no século da imagem” ? Pois então vamos substituir os livros por
filmes, os professores por aparelhos de TV. Ou então voltemos atrás cem anos.
Estamos entrando no século do rádio, pois então vamos substituir os livros por
áudio, os professores por receptores.
Acredito no poder da imagem, e sei até
que ela tem a capacidade de criar sentido:
muitas vezes a imagem me permite compreender coisas que outros meios não
permitem. Mas sei também que isso não
depende das tecnologias vibrantes do século XXI. Nas cavernas, a imagem pintada
na parede já criava sentido. Porém, a escrita é um suporte tremendamente
vigoroso para o entendimento, e nas atividades em que estou envolvido (aulas,
estudo, vestibulares, grupos de discussão) o texto escrito é fundamental. O
próprio Platão desde há muito percebeu que os diálogos não bastavam para
produzir o conhecimento e, contrariando suas primeiras convicções, passou a
redigi-los.
Dentre as frases que se ouve no mundo
corporativo está a famosa “Isso não tem fundamento científico”. A próxima etapa
é a convocação de um especialista para realizar uma pesquisa ou elaborar um
cálculo, enfim, produzir algum dado numérico. No mundo do presente perpétuo, ao
qual se esvazia a experiência e, portanto, quando o indivíduo não consegue
decidir nada sozinho, precisa-se do especialista. “Quem tem necessidade do
especialista” segundo Debord, “por motivos diversos, são o falsificador e o
ignorante”.
Respiro e sigo em frente, sabendo que o
pensamento radical, por mais bolha que pareça, me ajuda a manter a sanidade.
PS.:
Uma assinatura de TV a cabo de presente para o primeiro que identificar a
imagem da foto.
3 comentários:
Quando vi que você atualizou o blog, decidi adiar a visita por falta de tempo. Hoje, num dia mais tranquilo, resolvo dar uma lida e eis que me surpreendo: tive uma aula sobre Debord ontem à noite (com outro foco, claro)!
Interessante o fato de ele ter observado o fenômeno social do espetáculo há décadas e, mesmo assim, seu conceito ser atual.
Na Era do Capital, tudo vira mercadoria, e, para Debord, toda mercadoria culmina em relações de visualidade. Em outras palavras, o valor da imagem altera a mediação das relações sociais, criando a lógica do ser -> ter -> parecer.
Tentando encaixar o que aprendi no contexto corporativo que você deu, a lógica da visualidade se contrapõe à da informação. Com a proposta das imagens na sala de aula, achando que elas são suficientes, cria-se a falsa sensação de informação, prejudicando o ensino.
Não sei. Posso estar falando merda, mas foi o que entendi.
Abraços
Além dessa falta de solidez esse presente perpétuo que vc citou aparentemente deixa td muito superficial tb... li partes desse livro do Debord esses tempos, apesar do radicalismo bolha achei os comentários dele bem pertinentes pra sociedade atual!
Essa ideia de substituir palavras escritas por imagens me parece meio estúpida, me desculpe a pessoa que a teve(!), não só pq o cérebro recebe uma escrita diferente de uma imagem e bla bla bla, mas tb pq ao mesmo tempo que estamos no século das imagens nos tornamos também cada vez mais "imunes" a essas imagens (como vc fala na viagem pra ouro preto!) e acabamos muitas vezes não sabendo, ou não conseguindo, dar a atenção necessária, ainda mais por um longo período... acho que as duas coisas trabalham como complementos uma da outra, não como substituição... não tem como.
Sobre essa última parte, acho engraçado essa mania de exigir uma comprovação científica de td, e pior, quando se lê o mundo todo através dessas exatidões científicas. Ainda mais quando se trata de questões relacionadas à área de humanas, trabalhar com exatidão nas questões mais humanas me parece bem desumano as vezes...
E esse filme é muito além do jardim, não é?
É o desenho do pica pau! hahahahah
Ta cheio de "radicais" na Universidade, eles só não descobriram como dar o golpe ainda.
Na verdade há uma hipocrisia generalizada nas Universidades.
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