Prólogo
Resta
o problema de como conciliar essa visão pessimista com o fato incontestável de que o jogo
em si é legal, e ir ao estádio é a quintessência do prazer futebolístico, mais
até do que a própria prática do jogo, com suas botinadas e “vitórias a qualquer
custo”. Fora das quatro linhas, podemos assistir,
com a possibilidade de transformar o jogo em narrativa, dar-lhe nova dimensão
através da narrativa. Cena primordial: Nelson Rodrigues, míope feito uma
toupeira, acompanhando sabe-se lá o que das arquibancadas do Maracanã, para
escrever seu comentário sobre o jogo no jornal do dia seguinte.
Enfim,
periodicamente – e em segredo – dirijo-me a estádios, para acompanhar os jogos
mais diversos. Sem preferências clubísticas (nos últimos meses vi jogos de
Santos, Portuguesa, São Paulo, Corínthians, para citar só os da cidade) e
aproveitando para conhecer lugares por aí (do Municipal de Sorocaba ao Parc des
Princes, passando pelas mil vezes que fui ao meu preferido, o Pacaembu).
Cena 1 – entrada
do estádio
Dia desses, alegre
e fagueiro, sigo para o Morumbi, depois de anos sem sequer chegar perto do
bairro. Compro caros ingressos nas cadeiras cobertas, chego cedo para evitar
trânsito e levo um exemplar da revista Cult (“dossiê Adorno”) para ficar lendo
antes do jogo.
Os
torcedores são revistados, como de hábito e, para minha surpresa, o tradicional
guarda troglodita que me apalpa proíbe que eu entre com a revista. Pergunto por
que, e ele me diz que alguns torcedores põem fogo em jornais, criando pequenos
incêndios. Digo que minha revista não é um jornal e que havia acabado de comprá-la.
Ele sequer respondeu. Com um sorriso
assustadoramente inexpressivo, o guarda olhou nos meus olhos e arremessou a
revista para o lixo, enquanto esperava – ainda sem dizer nada e ainda sorrindo
– que eu desse lugar ao próximo torcedor a ser revistado. Foi um dos olhares
mais assustadores que recebi na vida. Imaginei que, nos porões, torturadores
davam esses sorrisos, enquanto prosseguiam impassivelmente no exercício de suas
atividades. Senti um calafrio na espinha.
Claro,
sobrevivi ao episódio e logo estava fazendo piadas sobre o fato de que a minha
revista pelo policial tinha sido logicamente exemplar: ele tomou nada menos que
a minha revista.
Cena 2 – já
dentro do estádio
E
vamos lá, após a revista e sem a revista, assistir a um jogo do São Paulo. Atrás de mim, um
moleque, nos seus 7 ou 8 anos, berrando feito um louco. Desde o anúncio dos
jogadores pelo alto-falante, e durante toda a partida, mesmo nos momentos menos
emocionantes, o petiz se esganava. Tinha uma preferência especial por Luís
Fabiano, a quem ele encorajava, aconselhava, xingava, ou simplesmente gritava o
nome, prolongando e modulando o último
"O" até atingir níveis insuportáveis.
As
pessoas nas cadeiras olhavam para trás espantadas, ele incomodava a todos em um
raio de uns vinte metros e, caramba, estava exatamente atrás de mim. Depois de
um dos gritos, particularmente ardido, olhei para trás e o pai, desolado, como
que se desculpou com o olhar. Me perguntei porque diabos esse pai banana não
conseguia controlar o filho. Pois ele não chamou atenção do fedelho nem uma vez
sequer.
Lá
pelas tantas, o bacuri virou para o pai e desabafou, baixinho, só quem estava
muito perto (=eu) ouviu: “Puxa , pai estou tão feliz de estar aqui com você
hoje ! Sabe, eu nem dormi direito essa noite de tão feliz que estava em vir no
jogo...”.
Puxa
vida. Vai se foder. Me derreti todo. Como é que uma coisa que gera tanto ódio e
tanta estupidez como o futebol é capaz de mexer com emoções e aproximar pai e
filho desse jeito ? Fiquei imaginando não só a ansiedade do pequenino, mas a memória
que ele construiu desse dia que será, certamente, inesquecível em sua vida. Mas
será que essa emoção autêntica vai sobreviver à lavagem cerebral futebolística
? Será que o garoto irá necessariamente se transformar em um torcedor fanático
com tendências homicidas e, convenhamos, fascistas ? Haverá um meio termo
possível ?
O
comentário do menino deixou um raio de esperança. E depois de ouvi-lo, não
tive mais coragem de olhar para trás com cara de bravo sequer uma vez.