domingo, 13 de janeiro de 2013

Arquétipos


Não há dúvida que ser competente dá trabalho, muito trabalho. Fique claro desde já que, ao usar o termo “competente”, me afasto um pouco do sentido corriqueiro da palavra – um misto de “empreendedorismo” (urgh !) com propensão a ganhar dinheiro a qualquer custo. No conceito de competêncina, prefiro enfatizar aquela dedicação à tarefa que resulta em um trabalho bem realizado.
 
É fácil perceber a competência na prática do trabalho manual, partindo do uso dos objetos produzidos. Penso nisso toda vez que entro no banheiro recém-reformado e só consigo manter a luz acesa, sem piscar, dando um murro no interruptor. Gostaria porém de pensar em competência na realização do trabalho intelectual, supostamente minha área central de atuação. Nessa área, o trabalho necessário à redação do texto consistente, à apresentação da tese original ou simplesmente à prática do pensamento rigoroso é tremendamente árduo.
 
Há, todavia, uma curiosa tendência de evitar (ou ser incapaz) de realizar o trabalho árduo e, em compensação, tentar demonstrar a competência assumindo traços de comportamento do intelectual comprovadamente competente. É o que eu chamo de cultura do arquétipo, e cito alguns exemplos imediatos.
 
Nas ciências Exatas, a figura do cientista desligado ou de comportamento extravagante tornou-se arquetípica – muitas anedotas e a famosa foto de Einstein estendendo a língua ajudaram a criar o arquétipo. Assim, muitos jovens físicos e matemáticos assumem comportamentos pouco convencionais, como tentativa de reforço a um trabalho acadêmico ao qual falta o brilhantismo.
 
Nas ciências Biológicas, ao que me parece, o arquétipo do brilhantismo passa pelo ateísmo. Transmite aquela imagem de cientista que entendeu efetivamente o evolucionismo e, com dificuldades em suas pesquisas acadêmicas, busca a aura de herói da ciência ao combater o obscurantismo religioso.
 
Porém, detenho-me nas ciências Humanas, área na qual o arquétipo da seriedade intelectual é nada menos que a melancolia. Para muitos, é necessário ser melancólico para ter credibilidade. A origem é evidente, Walter Benjamin, cujo obra é toda perpassada pelo  conceito de melancolia, vista pelo filósofo alemão como estado de espírito característico do sujeito moderno. Um dos pontos de partida é o pensamento de Freud, que aproximou a melancolia do luto tanto nos sintomas (paralisia, desânimo, tristeza) como nas origens (uma perda ou afastamento). Uma vez que a modernidade é fundada no transitório, no fugidio e no passageiro, a sensação de perda – fundamento do sentimento melancólico – passa a ser uma constante. No plano ético, essa perda relaciona-se com o afastamento do sujeito em relação ao Bem que, pelo menos na sua dimensão pública, transferiu-se para outras instâncias.
 
Numa estranha inversão, a genialidade da obra de Benjamin é obscurecida pela beleza dos textos, pela escrita fácil e elegante, que o faz um preferido de jovens estudantes das ciências Humanas. Acontece que além de conceituar a melancolia, Benjamin foi efetivamente um melancólico e seus bravos seguidores nas ciências Humanas, que nem sempre estão atentos às filigranas de seu pensamento, acabam incorporando apenas o arquétipo. Ser melancólico é ser benjaminiano, é estar por dentro. É ter credibilidade.
 
Penso na Universidade. Lembro-me de ter lido uma tese de doutorado da Letras, em que a autora caracterizava minuciosamente o trabalho de tradução, recheando sua análise com conceitos benjaminianos e terminando por concluir que todo tradutor é um melancólico – maior elogio impossível.
 
Penso nas esquerdas, que dominam a produção intelectual nas Humanas, pelo menos no Brasil (vai lá ler Gramsci e entenda porque). Nesse caso, o sentimento de perda, fundamento da melancolia, é real. A queda do modelo soviético levou junto uma alternativa à ordem capitalista, e a ideologia que lhe sustentava, queira ou não, ficou abalada. Nos últimos trinta anos, a palavra de ordem passou a ser: recolher os cacos, reconstruir a ideologia, olhar para o futuro, mas sempre sentindo o gosto amargo da perda.

 Penso no Poeta. Por que ele escreve ? Se dói, ele escreve para sedar a sua dor; se não dói, ele não estaria escrevendo, mas se divertindo por aí. Se perdeu, escreve para recuperar; se não houvesse perdido, estaria usufruindo e não escrevendo. Se está só, escreve para ter companhia; se já tem, vai aproveitá-la. Não haverá por trás de toda Lírica um sentimento negativo (e não seria Lírica a forma de ultrapassá-lo, produzindo, como efeito colateral, o Belo ?).
 
Penso no fascismo e seus sucedâneos. O otimismo desvairado fascista faz com que qualquer aparente bom-mocismo entusiástico seja visto com suspeita. Além disso, quando o anjo da História (e dá-lhe Benjamin) olha para trás, nos últimos cem anos ele tem que lidar com um rastro de destruição francamente devastador.
 
Penso em Ernesto Sábato, meu segundo autor argentino preferido. Lendo o romance “Sobre heróis e tumbas” (ainda estou na página 40, o termo melancolia/melancólico já apareceu cinco vezes) me deparo com o seguinte trecho:
 
...por isso os pessimistas são recrutados entre os ex-esperançados, pois para ter uma visão negra do mundo há que antes ter acreditado nele e em suas possibilidades. E é ainda mais curioso e paradoxal que os pessimistas, uma vez decepcionados, não estejam constante e sistematicamente desesperançados e que, de certo modo, pareçam dispostos a renovar sua esperança a cada instante, embora o dissimulem sob seu negro invólucro de amargos universais, devido a um certo pudor metafísico, como se o pessimismo, para manter-se forte e sempre vigoroso, precisasse de vez em quando de novo impulso produzido por uma nova e brutal decepção.
 
A melancolia produz melancolia. Tenho saudades de quando a melancolia era apenas um sentimento, e não um valor.

8 comentários:

Sentir disse...

quem eh o primeiro autor predileto? Borges? E Julio Cotazar? So' escreve quem tem falta.

Gian disse...

Borges.

E vc, continua escrevendo ?

Sentir disse...

Sempre. O preenchimento eh sempre temporario.

Unknown disse...

creio q o tempo nos convida a vivenciar e viver experiências, uma delas é o sentimento de melancolia, em que um muro nos separa entre o que somos (ou o que é), daquilo que gostaríamos que fossemos (ou o que poderia ter sido); só que, também acho importante me apegar a tal melancolia (gerada pela decepção) para poder criticar a mim mesmo e prosseguir com a vida, procurando algo que falta, no caso das ciências, posso dizer que falta a geração de conhecimento, no gosto por criar e tornar-me menos ignorante. talvez esse o meu significado para competência: um pequeno passo em minha vida, mas um grande passo em minha existência. a melancolia pode gerar melancolia, mas prefiro que a melancolia gere um sentido para buscar a felicidade.

Pierri disse...

Boa, Gian.
Grande abraço!

Gian disse...

Meu caro Mikhail, acho que concordamos no atacado, porém acho que o tal muro não nos separa do futuro, mas do passado: o que fomos um dia e o que deixamos de ser hoje.

Mudando radicalmente de assunto, permita-me uma pergunta: vc por acaso faz parte da expressiva e absolutamente inesperada legião de seguidores que tenho na Rússia ? O site identifica dezenas de acessos russos toda semana, não faço ideia de quem sejam essas pessoas ou do que elas procuram. Alguém tem alguma pista ?

Abraços.

Gian disse...

Abraços também para Pierre e C., velhos parceiros de colóquios, cada um a seu jeito.

Unknown disse...

Tal dito sobre o muro como você mencionou é interessantíssimo! Não havia pensado sobre isso, assim, creio que isso talvez complemente a idéia: O tempo presente é curioso por não ser palpável, nem mensurável; como o passado e o futuro, são, de certa maneira. O agora é o futuro do passado e o passado do futuro, mas não é nenhuma das duas coisas concomitantemente, então, se houvesse um muro na frente, haveria de ter um atrás também. Talvez a melancolia, então, seja resultado de tal iminência de estar e não estar em nenhum tempo, considerando o presente acima descrito. Talvez a melancolia parta do princípio da incerteza, dessa forma.

Bem, não faço parte, nem tenho ciência dos seguidores russos, desculpe por não poder ajudá-lo. :(

Abraços