O hábito é indissolúvel da experiência de habitar. (Heidegger)
Uma mudança
equivale a meio incêndio, não apenas pela destruição provocada pelos
profissionais encarregados do transporte, mas sobretudo pela fúria higienizadora
que leva a abarrotar latas de lixo durante a preparação. Aqui não há lugar para
sentimentalismos: objetos, fotos, cartas, memórias, tudo submerge diante da necessidade
imperativa de criar espaço e poupar trabalho. Seria o racionalismo a causa
última da leveza de espírito ?
Lembro daquela
imagem descrita em um antigo obituário em The
Economist: as memórias são como fotos esquecidas no fundo das gavetas. Com
o tempo, elas vão ficando amareladas, em alguns casos até mofadas. Não raro,
escorregam para trás da gaveta e nesse caso nunca mais lidamos com elas. Até
que, na mudança, todas reaparecem. As últimas noites passadas no antigo lar são
assombradas por inúmeros fantasmas.
Fotos
eletrônicas tem a singularidade de serem transportadas em grande número dentro
de práticos discos rígidos. Ou, melhor ainda: são preservadas na nuvem. Mas são
fotos tiradas aos milhares, selfies irrelevantes, pratos de almoços “inesquecíveis”
sobre os quais já nem lembramos onde foram ou na companhia de quem, multidões de pessoas anônimas e sorridentes,
paisagens de viagem indistintas: todas as praias são iguais, a décima segunda
catedral gótica da semana já se confunde com a terceira ...ou seria com a
quinta ?
O novo lar é
branco, é frio. As paredes ainda estão nuas, os quadros permanecem embalados, encostados
em um canto. O edifício parece desabitado: ainda não encontrei ninguém nos
corredores, no elevador ou na garagem. Um toque inesperado de calor é a
proximidade com a rua: ouço conversas de passantes, portões que se abrem e
fecham, descubro que alguém no 32 pediu pizza, ouço a porta da padaria fechando.
Olhando os passarinhos
que circulam pela pequena sacada – a vizinha invisível os alimenta com frutas –
sigo seus voos incertos até os fios elétricos, até os galhos de uma ou outra
árvore. Observando os pássaros dessa nova paisagem, vejo pousado lá no alto uma
ave melancólica: uma jovem sentada na sua sacada, uns seis andares acima de
mim do outro lado da rua, fuma seu cigarro e observa a paisagem silenciosa dos prédios no entorno: janelas
sempre fechadas de ambientes climatizados, cujos moradores só saem à rua em
carros provavelmente blindados com vidros escurecidos. Vão ao shopping, provavelmente.
Ligar o gás,
conectar à internet, pintar a parede, entregar os móveis, instalar não sei mais
o quê... Uma galeria proletária com toda a sua diversidade desfila diante desse
espaço ainda estranho onde moro. Alguns são explicitamente corintianos. O
eletricista, empolgado por voltar ao bairro, me mostra as fotos que tirou da famosa
tempestade de granizo semanas atrás.
Acordo pela
quarta manhã seguida no novo lar. Finalmente dormi bem: tive sonhos. Em breve,
a moça que faz a limpeza voltará aqui. O jornal já é entregue habitualmente na
porta de casa. O chuveiro do novo banheiro parece a nave Enterprise e, elétrico, emite um suave zumbido a cada banho. Recebo
uma visita, conversamos, abrimos uma cerveja. A moça seis andares acima fuma novamente
o seu cigarro. Lentamente, vou habitando o novo lar com memórias.
2 comentários:
Seja feliz em sua nova casa, Gian,
Ah, e já ia me esquecendo (talvez de tão praxe): ótimo texto.
Forte abraço,
Marcelo Pierri Chiariello
Parabéns professor, o senhor merece. Assinado: ouvinte da "frase" em 2009.
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