Errazuriz Pinot Noir Reserva, 2006
Recomendaram-me esse vinho semanas atrás, topei com ele por acaso em um jantar. Ao escolhê-lo, fui tratado com alguma cerimônia: o maitre acompanhou a abertura da garrafa e aguardou até que eu estivesse satisfeito. Limito-me a dizer que o vinho agradou muito, dispenso o vocabulário arrogante dos eno-chatos para descrevê-lo (“ambicioso!”, “retrogosto suave!”, “aroma de dálias... não, begônias!”). Se por um lado os especialistas usam palavras que consideramos estranhas para descrever um vinho, por outro passamos a entendê-las com o tempo. Por exemplo, fala-se da “complexidade” de um vinho e naquela noite, de fato, diversos sabores e odores foram despertados a partir o primeiro gole que tomei. Relaxei e me felicitei pela escolha, sabendo que estaria em boa companhia pela noite afora.
O cardápio eclético acompanhou bem o vinho, mas ainda sim tive o cuidado de limpar a boca com pão e água antes de cada gole. Para não ter que pedir uma segunda garrafa de vinho tão caro, fui controlando cada gole, transformando cada toque dos lábios na taça, cada aproximação do nariz na superfície do líquido em uma momento de seriedade e dedicação. Porém, a noite foi passando e o vinho simplesmente foi morrendo. Não lembro do segundo gole, mas lá pelas tantas – e perfeitamente sóbrio – percebi que o vinho não justificava tanta devoção. Ao final, deixei sobrando uns dois dedos na taça.
Que teria acontecido ? Cruzei com um vinho fino, bem cuidado e bem preservado que ao ser aberto, explodiu com todo seu vigor e aroma, dominando todo espaço sensorial à sua volta, mas que teve nessa explosão sua única manifestação de vida. Talvez a matéria-prima, o fruto mesmo do qual se extraiu o vinho, não estivesse à altura, não tivesse personalidade suficiente para impor seu sabor para além de alguns poucos minutos. Preservarei na memória um excelente primeiro gole e certamente abrirei outras garrafas de Errazuriz, mas saberei que os prazeres oferecidos serão apenas passageiros.
Chateau Moulin de Brion, 2003
“Sempre é melhor pedir um vinho francês, porque mesmo quando ele não é bom, é bom”, ouvi certa vez de um conhecido. Na França, os padrões são outros e é certamente com olho gordo que abrimos, por exemplo, um vinho superieur do Medoc. Aproveitamos cada detalhe, a começar pelo som da rolha saindo da garrafa: um leve rangido conforme ela vai sendo puxada e esfregada de encontro à parede da garrafa e, subitamente um “tloc”, barulho explosivo porém discreto, que já desperta a imaginação para os odores saindo para fora da garrafa. Segue-se a bela visão do líquido sendo derramado na taça, revelando sua cor ao delicioso som do líquido se espalhando, ocupando espaço.
Estava em casa, concentrado, quando abri esse vinho. Foi com expectativa que segui todo ritual e me concentrei nos pequenos detalhes da abertura da garrafa. Me aproximei do vinho lembrando o dia em que tomei meu primeiro bordeaux superior, antecipando os sabores que iria experimentar. Dei um gole voluptuoso, deixei escorrer o líquido em volta da língua, sentindo o aroma excitar meu nariz e, antes mesmo de engolir, me dei conta de uma estranha falta de sabor, de um inesperado e muito leve adocicado que não tinham nada a ver com a nobreza de um bordeaux. Estranhei o gosto daquela bebida quase insossa. Pensei, quem sabe, nas mazelas do armazenamento. Lembrei que 2003 foi o ano da canicule, um verão terrível que pela primeira vez chamou atenção da França sobre o aquecimento global ao mesmo tempo em que as uvas secavam, adocicadas, nas videiras. Cheguei a lembrar do escândalo de 1985, quando vários produtores europeus foram surpreendidos acrescentando anti-congelantes para motor diesel em suas garrafas, alterando – e muito – o sabor da bebida.
Recomendaram-me esse vinho semanas atrás, topei com ele por acaso em um jantar. Ao escolhê-lo, fui tratado com alguma cerimônia: o maitre acompanhou a abertura da garrafa e aguardou até que eu estivesse satisfeito. Limito-me a dizer que o vinho agradou muito, dispenso o vocabulário arrogante dos eno-chatos para descrevê-lo (“ambicioso!”, “retrogosto suave!”, “aroma de dálias... não, begônias!”). Se por um lado os especialistas usam palavras que consideramos estranhas para descrever um vinho, por outro passamos a entendê-las com o tempo. Por exemplo, fala-se da “complexidade” de um vinho e naquela noite, de fato, diversos sabores e odores foram despertados a partir o primeiro gole que tomei. Relaxei e me felicitei pela escolha, sabendo que estaria em boa companhia pela noite afora.
O cardápio eclético acompanhou bem o vinho, mas ainda sim tive o cuidado de limpar a boca com pão e água antes de cada gole. Para não ter que pedir uma segunda garrafa de vinho tão caro, fui controlando cada gole, transformando cada toque dos lábios na taça, cada aproximação do nariz na superfície do líquido em uma momento de seriedade e dedicação. Porém, a noite foi passando e o vinho simplesmente foi morrendo. Não lembro do segundo gole, mas lá pelas tantas – e perfeitamente sóbrio – percebi que o vinho não justificava tanta devoção. Ao final, deixei sobrando uns dois dedos na taça.
Que teria acontecido ? Cruzei com um vinho fino, bem cuidado e bem preservado que ao ser aberto, explodiu com todo seu vigor e aroma, dominando todo espaço sensorial à sua volta, mas que teve nessa explosão sua única manifestação de vida. Talvez a matéria-prima, o fruto mesmo do qual se extraiu o vinho, não estivesse à altura, não tivesse personalidade suficiente para impor seu sabor para além de alguns poucos minutos. Preservarei na memória um excelente primeiro gole e certamente abrirei outras garrafas de Errazuriz, mas saberei que os prazeres oferecidos serão apenas passageiros.
Chateau Moulin de Brion, 2003
“Sempre é melhor pedir um vinho francês, porque mesmo quando ele não é bom, é bom”, ouvi certa vez de um conhecido. Na França, os padrões são outros e é certamente com olho gordo que abrimos, por exemplo, um vinho superieur do Medoc. Aproveitamos cada detalhe, a começar pelo som da rolha saindo da garrafa: um leve rangido conforme ela vai sendo puxada e esfregada de encontro à parede da garrafa e, subitamente um “tloc”, barulho explosivo porém discreto, que já desperta a imaginação para os odores saindo para fora da garrafa. Segue-se a bela visão do líquido sendo derramado na taça, revelando sua cor ao delicioso som do líquido se espalhando, ocupando espaço.
Estava em casa, concentrado, quando abri esse vinho. Foi com expectativa que segui todo ritual e me concentrei nos pequenos detalhes da abertura da garrafa. Me aproximei do vinho lembrando o dia em que tomei meu primeiro bordeaux superior, antecipando os sabores que iria experimentar. Dei um gole voluptuoso, deixei escorrer o líquido em volta da língua, sentindo o aroma excitar meu nariz e, antes mesmo de engolir, me dei conta de uma estranha falta de sabor, de um inesperado e muito leve adocicado que não tinham nada a ver com a nobreza de um bordeaux. Estranhei o gosto daquela bebida quase insossa. Pensei, quem sabe, nas mazelas do armazenamento. Lembrei que 2003 foi o ano da canicule, um verão terrível que pela primeira vez chamou atenção da França sobre o aquecimento global ao mesmo tempo em que as uvas secavam, adocicadas, nas videiras. Cheguei a lembrar do escândalo de 1985, quando vários produtores europeus foram surpreendidos acrescentando anti-congelantes para motor diesel em suas garrafas, alterando – e muito – o sabor da bebida.
Seja como for, resolvi enfrentar o vinho. Deixei-o respirar, derramando todo o conteúdo da garrafa no decanter. Percebi que pelo menos sua cor era belíssima. Esperei, tomei um segundo gole da taça e comecei a achar que talvez o vinho não fosse tão ruim assim. (Ou será que minha boca estava anestesiada ?). A dor no bolso me fez lutar contra o vinho por toda a noite e, ao longo das horas, o vinho foi se revelando. A segunda taça, vertida do decanter, apresentou um equilíbrio insuspeito. Seguiu-se uma terceira taça e, em breve, percebi que o próprio gosto do vinho foi mudando ao longo da noite, se aprimorando. O vinho foi se “encaixando” com o tempo, a ponto de despertar o desejo de que aquela garrafa não acabasse nunca. Seria isso o que os especialistas chamam de um vinho com personalidade ? Pois ela acabou se impondo em uma da melhores garrafas que jamais abri.
Castelo di Brolio, 1998
A extrema complexidade e infinita diversidade dos vinhos acabam por transformá-los na bebida humana por excelência. Pois os vinhos, na verdade, são como os humanos. Alguns deles se apresentam fortemente impactantes no primeiro contato, dominantes e sedutores, mas seu vigor é passageiro, não sobrevivem à experiência do tempo, seja na curta duração de uma noite, seja no longo prazo, esperando o envelhecimento. Outros passam desapercebidos, alguns chegam até a transmitir uma má impressão, mas vão se revelando aos poucos. Primeiro percebemos um detalhe, depois outro, em seguida mais um e, quando menos esperamos, uma personalidade cativante se desvenda. E aí chegamos ao terceiro vinho que quero comentar.
Durante muito tempo tive uma garrafa de Castelo di Broglio 1998. Várias vezes sentei-me na poltrona vermelha da sala, com um belo livro nas mãos e, interrompendo a leitura, em pleno silêncio da noite, olhava para a prateleira onde repousam as garrafas de vinho. Naquele canto meio obscuro da sala, eu percebia a ponta vermelha da garrafa do Castelo di Broglio. Muitas vezes pensei, “Será que já está na hora de abri-la ?”. Outras tantas vezes me levantei, peguei a garrafa de fiquei olhando para ela. Levantando-a contra a luz, tentava perceber alguma tonalidade de vermelho por trás do vidro escuro. Nessas horas eu pensava: alguma coisa está acontecendo nessa garrafa, os sabores estão mudando. Se eu abrir essa garrafa hoje terei um vinho, se abrir em um ano terei outro. Uma garrafa de vinho é algo vivo, em transformação silenciosa, pronta para revelar seu segredo na hora certa, seja lá qual for essa hora, seja lá qual for esse segredo.
Volto para a analogia com as pessoas. As pessoas mais interessantes são como minha garrafa de Castelo di Broglio: não as que tem segredos tolos, mas aquelas que, em silêncio, estão mudando. Aquelas que, uma vez desvendadas, colocam-nos diante do inesperado. Quantas vezes não contemplamos uma face sabendo ou pelo menos imaginando a verdadeira explosão que está ocorrendo em seu interior ? Quantas vezes uma palavra (ou, em casos excepcionais, uma simples presença) pode despertar ou acelerar essas mudanças ? Da experiência de professor: passo muito tempo contemplando faces entediadas, mas eventualmente digo algo que provoca um rápido erguer de sobrancelha, uma ruga na teste, um movimento de cabeça. Um olho quase adormecido que se arregala. Nessas horas, tenho vontade de saber o que despertei, ou como minhas palavras estão sendo ouvidas: quero um retorno, uma volta. Pois uma pessoa, todas as pessoas, como uma garrafa de vinho, têm a capacidade de nos por diante de coisas novas, jamais experimentadas, seja sob a forma de pensamentos nunca imaginados, de sentimentos jamais vividos ou de reações inusitadas.
Pois então bebamos. Tomemos vinho, vamos nos embriagar de Humanidade.
Castelo di Brolio, 1998
A extrema complexidade e infinita diversidade dos vinhos acabam por transformá-los na bebida humana por excelência. Pois os vinhos, na verdade, são como os humanos. Alguns deles se apresentam fortemente impactantes no primeiro contato, dominantes e sedutores, mas seu vigor é passageiro, não sobrevivem à experiência do tempo, seja na curta duração de uma noite, seja no longo prazo, esperando o envelhecimento. Outros passam desapercebidos, alguns chegam até a transmitir uma má impressão, mas vão se revelando aos poucos. Primeiro percebemos um detalhe, depois outro, em seguida mais um e, quando menos esperamos, uma personalidade cativante se desvenda. E aí chegamos ao terceiro vinho que quero comentar.
Durante muito tempo tive uma garrafa de Castelo di Broglio 1998. Várias vezes sentei-me na poltrona vermelha da sala, com um belo livro nas mãos e, interrompendo a leitura, em pleno silêncio da noite, olhava para a prateleira onde repousam as garrafas de vinho. Naquele canto meio obscuro da sala, eu percebia a ponta vermelha da garrafa do Castelo di Broglio. Muitas vezes pensei, “Será que já está na hora de abri-la ?”. Outras tantas vezes me levantei, peguei a garrafa de fiquei olhando para ela. Levantando-a contra a luz, tentava perceber alguma tonalidade de vermelho por trás do vidro escuro. Nessas horas eu pensava: alguma coisa está acontecendo nessa garrafa, os sabores estão mudando. Se eu abrir essa garrafa hoje terei um vinho, se abrir em um ano terei outro. Uma garrafa de vinho é algo vivo, em transformação silenciosa, pronta para revelar seu segredo na hora certa, seja lá qual for essa hora, seja lá qual for esse segredo.
Volto para a analogia com as pessoas. As pessoas mais interessantes são como minha garrafa de Castelo di Broglio: não as que tem segredos tolos, mas aquelas que, em silêncio, estão mudando. Aquelas que, uma vez desvendadas, colocam-nos diante do inesperado. Quantas vezes não contemplamos uma face sabendo ou pelo menos imaginando a verdadeira explosão que está ocorrendo em seu interior ? Quantas vezes uma palavra (ou, em casos excepcionais, uma simples presença) pode despertar ou acelerar essas mudanças ? Da experiência de professor: passo muito tempo contemplando faces entediadas, mas eventualmente digo algo que provoca um rápido erguer de sobrancelha, uma ruga na teste, um movimento de cabeça. Um olho quase adormecido que se arregala. Nessas horas, tenho vontade de saber o que despertei, ou como minhas palavras estão sendo ouvidas: quero um retorno, uma volta. Pois uma pessoa, todas as pessoas, como uma garrafa de vinho, têm a capacidade de nos por diante de coisas novas, jamais experimentadas, seja sob a forma de pensamentos nunca imaginados, de sentimentos jamais vividos ou de reações inusitadas.
Pois então bebamos. Tomemos vinho, vamos nos embriagar de Humanidade.