quarta-feira, 13 de maio de 2009

Sobre um rosto




O mito, de origem grega, todos conhecem: Urano (=Céu) nasceu espontaneamente do ventre de Gaia (=Terra), sem ter sido gerado por um pai qualquer. Ambos se casaram e tiveram como filhos seres gigantescos, os Titãs. Urano, ciumento, mantinha os filhos presos dentro da Terra. Gaia, porém, acabou incitando os filhos a se revoltarem contra o pai, e um deles, Cronos (=Tempo) não apenas liderou a luta como acabou castrando o pai e jogando seus testículos no mar. Estes, todavia, acabaram fecundando o mar e foi justamente da espuma das ondas que nasceu Afrodite, a deusa do amor.

Os romanos chamaram-na de Vênus, e foi com esse nome que suas representações plásticas mais elaboradas ficaram conhecidas. Um exemplo expressivo encontra-se na tela de Sandro Boticelli, O Nascimento da Vênus, pintada provavelmente em 1483. Nesta tela Vênus aparece brotando das águas, flutuando sobre uma concha. Tentando fazer bela a sua Vênus, o artista acabou por expressar o ideal universal da beleza renascentista.

Deixo de lado o corpo sinuoso e as ancas largas, me concentro no rosto da Vênus de Boticelli. Seu rosto se aproxima da perfeição, cada parte parece ter sido concebida pelos deuses. Ou melhor, cada parte parece ter sido concebida por um deus que, em seguida, morreu, garantindo que nunca mais tal perfeição seria repetida. Sua boca, ao invés de um traço indistinto, segue as linhas de um “M” muito discreto, com cada curva sutil indicando um lábio carnudo, porém não exagerado. Como se percebe, seu queixo é um pouquinho saltado, insinuando uma sombra entre sua ponta e o lábio inferior. Isso faz do lábio inferior até um pouco mais carnudo que o superior, como nas propagandas de cosméticos de hoje em dia. Os lábios têm a cor mais viva que a do rosto, mas estão longe de um vermelho vibrante ou sensual, limitando-se a perfeição de um rosado vivo.

O nariz da Vênus também é de uma perfeição impressionante: ao mesmo tempo pequeno e delicado, é incapaz de produzir uma sombra sequer no rosto. Imagino que esse nariz seja o modelo de não sei quantas cirurgias plásticas que se fazem por aí. Da mesma forma, os olhos, perfeitos, sem nenhum excesso, sem nenhuma ruga ou pé-de-galinha. São olhos grandes, que exibem como que em wide-screen sua fantástica cor. Na Itália, são chamados de occhi alpini, olhos alpinos, caracterizados por uma cor que não é nem verde e nem castanho, mas um pouco das duas ao mesmo tempo. A pele de sua face é lisa, imagina-se a sua maciez. Nas maçãs do rosto, um rosado muito sutil dá vida ao conjunto.

E aí é que está o ponto. Diante da perfeição das partes, o resultado final é de uma inexpressividade atroz. Me pergunto sinceramente se esse rosto, enquanto conjunto, de fato é belo. Às vezes o certinho é tão sem graça ! Onde está a diferença ? Onde está a forma que foge do modelo idealizado ? Onde está o traço distintivo que provoca a estranheza ? Ou melhor, onde está o traço distintivo que simplesmente provoca ? Brinco de imaginar a personalidade dessa mulher: deve ser uma pessoa sem vontade própria, sem gosto definido, para quem tudo está bom. Sua vida deve dizer “Não sou nada/ Nunca serei nada/ Não preciso ser nada/ Pois tenho em mim toda beleza do mundo”. (continuação: “Espelhos do meu quarto...” e por aí vai).

Outro dia, em um Alegre Colóquio, perguntaram qual meu tipo de mulher. Trata-se de pergunta recorrente, todos acabam se perguntando, todos ouvem um dia, qual seu tipo de mulher, qual seu tipo de homem. Será que existe mesmo isso, um tipo de beleza que buscamos e com o qual um dia nos identificamos (e daí provavelmente partimos em busca do pleno êxtase amoroso) ? Duvido. Ao idealizarmos um tipo, acabamos criando modelos que, quando encontrados, jamais provocarão o encantamento: nós já sabemos como eles são. Diga o que quiser, critérios de beleza são, ao mesmo tempo, subjetivos e particulares. Subjetivos, porque cada um tem o seu; como decorrência, são particulares, pois não existe uma “beleza universal”. O meu critério de beleza é só meu, e eu sequer o conheço, limito-me a ficar alegremente surpreso quando de repente cruzo com ela.

Por outro lado, critérios dominantes que apontam para um modelo universal de beleza até existem, mas não lidam com o mundo real. E quando invadem a realidade provocam terror: não existe nada mais assustador do que cruzar com uma Barbie de carne e osso. E silicone.

11 comentários:

Willzito disse...

Eu conheço a origem grega, porem nao sou capaz d contar essa historia. Sempre confundo os nomes, troco Urano por Saturno, ainda mais morando num bairro q metade das ruas sao nomes d pedras preciosas e outra metade sao planetas ='(....
Beleza eh subjetiva mesmo, talvez por isso as pessoas falem tanto da 'beleza interior'. Nao adianta ser uma Barbie se a cabeça eh d uma taturana. =)
'À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.'

Mariana Teresa disse...

Hummmmmmmmm....Entendi....
Vou me inspirar!

Anna disse...

A beleza do Renascimento está bem mais para proporções matemáticas do que para a natureza em si. Não importa quantos calculos se faça a respeito da natureza, ela é assimétrica. E por isso, talvez, ao fazer um olhar tão atento a esta Vênus nos causa certo espanto. Ela simplesmente não é humana, como nós, assimétricos. Um dos pais da proporção de desenho anatômico foi o Leo da Vinci, naquele esboço que quase todo mundo viu na vida, o Homem Vitruviano, onde o homem é explicado em proporções geométricas. Hoje em dia só fizeram algumas alterações no desenho do Leo, mas na prática continua o mesmo: tronco 3/2 cabeça, pernas 2 1/2 tronco. Isso é usado até hoje, ou seja, ainda não abandonamos totalmente esse ideal dos antigos artistas italianos. Não é de impressionar? Mesmo na antiga Grécia (renascimento da antiguidade?) a beleza da arquitetura era toda feita em padrões geométricos. Talvez esteja aí o tal "consertar onde deus errou" do artista renascentista, já que a natureza, de fato, carece de simetria. É a forma dele expressar que superou a natureza. Para nós, esta beleza antiga nos causa estranheza porque nosso padrão atual de beleza é "fugir do padrão", ser diferente, ser assimétrico. O oposto dos renascentistas.

Gian disse...

Hummmmmm... não sei não. Acho que a maior parte das pessoas considera o rosto da Vênus de Boticelli (e sua espantosa simetria) um modelo de beleza até hoje. Acho que poucos vêem o belo no assimétrico, no diferente (daí a persistência do padrão "Barbie" de beleza). Mas é interessante essa relação entre deus = assimetria (natureza) X homem = simetria (arte).

Anônimo disse...

gian, foi muito mágico seguir o zoom-extremo do rosto da Vênus lendo a sua descrição!
eu acho a vênus linda, linda, linda de verdade. sei lá se ela seria uma pessoa interessante se existisse na real, mas com certeza seria uma pessoa linda, linda de apreciar! (amar é outra coisaa)

ahhhh o seu blog sempre me lembra de algum vídeoo
http://www.youtube.com/watch?v=nUDIoN-_Hxs
"Women In Art", seqüência de retratos femininos

Gian disse...

MUITO legal o "Woman in Art". Vai para o próximo post.

Unknown disse...

Eu poderia interpretar a "imperfeição" das proporções de Vênus como tendência do maneirismo clássico?

Pierri disse...

Gian,
de Boticelli a Dr. Viktor Frankenstein, seguindo a mesma linha de "Women in art"...




http://www.youtube.com/watch?v=VvjVEvT5KFo


Qualquer semelhança é mera........miopia

Sentir disse...

A beleza contemporânea...o transorganico...

P.D. disse...

O interessante da Vênus é o quão perfeitamente ela expressa a filosofia grega, as proporções nela expostas foram definidas por Platão como uma constante da perfeição de toda natureza,sua perfeição é fria e talvez isso se deva à seu ar divino,retornando e novo ao filosofo da caverna que alia verdade,beleza e perfeição, nos sentimos pequenos diante da graneza da obra.
Boticelli teve a sensibilidade de captar aquilo que ditou a filosofia nos 400 anos seguintes,uma filosofia que valorizava aquilo que transcende, sempre buscando a verdade,beleza e perfeição, não levando em conta a imperfeição que é própria dos seres humanos, e que nos garante uma identiade própria, nos separando da massa.
Ao olhar para uma barbie assim como ao olhar para a Vênus me vem a mente um esteriótipo uma ideologia e talvez seja exatamente esse o motivo pelo qual primamos pela perfeição,ela é absoluta, inquestionável, mais importante é que ela é comum,uma das poucos coisas compartilhadas pela sociedae o hiper consumo e seu indiviualismo selvagem.No final a beleza da proporção, a busca pelo perfeito está relacionado com uma deficiência que é o medo da solidão.

Otavio disse...

Gian,
Exelente de você levantar o tema do Perfeito sem graça, pois isso ocorre na história tanto na arte de Vênus como com o "American way of life" correto?? Esposa de vestidinho de bolinha e quase sempre na cozinha, filhos , lavadora GE, carrao da ford e casinha com porteirinha braca.O que mostra que tanto na arte quanto na beleza quando na vida como um todo perfeição demais acabe deixando tudo "meio sem gracinha". Muita viagem?