terça-feira, 19 de maio de 2009

Fui logrado




Já faz algum tempo que deixei de ir ao MASP. Gosto muito do seu acervo, vivo recomendando para que as pessoas o visitem, mas desde há muito não concordo com sua política de exposições. Tal política assumiu um ar meio populista, enfatizando as mega-exposições, daquelas que aparecem na televisão e atraem multidões ruidosas. Por exemplo, Salvador Dali (1998), Guerreiros de Xi’an (2003) e gravuras de Goya (2007). Nada contra uma política voltada para a popularização da arte, mas muitas vezes desconfio que o objetivo dessas mostras é apenas bater recordes de público e, cá entre nós, é altamente duvidoso o bem que pode ser provocado por uma exposição muito movimentada. Nessas exposições, as pessoas são tantas que se formam filas diante dos quadros pendurados na parede, e é muito difícil pensar ou se dedicar a uma obra, uma vez que a fila anda e nos empurra para frente queiramos ou não. Ao mesmo tempo, a fila permanece a uma distância mínima das telas (o suficiente para que se leia a plaquinha diminuta com identificação da obra e artista), tornando impossível, por exemplo, contemplar uma grande tela a uma distância razoável, ou dar um passo atrás ou para o lado buscando uma outra luz, um outro olhar. E mais, as pessoas falam. Qualquer conversa em voz baixa (em tom de Museu) se transforma em um ruído de fundo insuportável quando multiplicada por 50, por 100.

Mas há outros indícios que apontam para a ênfase no populismo. A exposição Tesouros da Terra Santa (2008) fez a alegria dos evangélicos que, disciplinadamente, lotavam ônibus e seguiam seus pastores na visita a tão abençoada mostra. Antes disso, em 2007, uma exposição científica: “Darwin – descubra o homem e a teoria revolucionária que mudou o mundo”. Entre os objetos pessoais de Darwin, expunham-se ossadas de baleia e réplicas das tartarugas de Galápagos sob uma iluminação dramática. Qual o sentido dessa exposição no Museu de ARTE é algo que me escapa.

Claro, conhecendo a situação pré-falimentar da instituição entendemos sua política: tem que dar grana. E que se dane algum projeto culturalmente mais ambicioso. Enquanto isso, a Pinacoteca tem exibido nos últimos anos mostras pequenas e muito mais ricas (Imagens do Soberano, 2007; Taunay nos Trópicos, 2008), isso para não falar do MAM no Ibirapuera e do MAC, perdido na USP, sempre muito mais agradáveis de se visitar.

Porém, há um outro aspecto do atual projeto (?) do MASP que chama atenção: por sua riqueza, o acervo permite recortes temáticos e/ou cronológicos que podem dar origem a mostras interessantes. Por exemplo, tivemos recentemente as mostras de Portinari (séries Bíblica e Retirantes), de Toulouse-Lautrec em 2007 e a Brasiliana em 2006. É nesse contexto que está em cartaz atualmente a Mostra “Arte na França 1860-1960: o Realismo”, na qual parte importante do acervo do Museu se junta a algumas obras vindas de coleções da França e Portugal.

Que o Museu deseje expor seu acervo, nada contra. Que o Museu queira privilegiar os múltiplos recortes possíveis em um acervo rico, idem. Porém, após uma visita à exposição ficou a nítida impressão que o MASP “forçou a barra” para apresentar em uma exposição sobre Realismo obras que não tem nada a ver com o movimento. Assim, entramos na exposição e topamos com os tradicionais ícones do MASP, Manet, Monet, Cézanne, Van Gogh e chegamos a Picasso e Miró. Como assim ???

Na pintura, o Realismo foi um movimento sobretudo da segunda metade do século XIX que se inspirou nos avanços da ciência e da técnica ocorridos na época (Segunda Revolução Industrial ou Revolução Tecno-Científica). O artista passou a buscar a mesma objetividade com que os cientistas abordavam a natureza, e o resultado seria a representação da natureza “tal como ela é”, sem enfeites ou distorções. Diante da imagem pintada devemos ter a certeza de enxergar o real. A relação com o socialismo, em franca ascensão na época, é evidente: se os artistas começarem a representar a realidade (marcada pela exploração) do jeito que ela é, ajudarão a despertar as massas de seu torpor. Escreveu Gustave Courbet (1819-1877): "Sou democrata, republicano, socialista, realista, amigo da verdade e verdadeiro".

Se a arte busca expressar a verdade, então a hora do realismo parecia haver chegado. E, chegando no MASP, de cara cruzamos com uma tela de Courbet, porém logo percebemos que os realistas estão perdidos no meio de impressionistas, pós-impressionistas, cubistas, abstracionistas e, na parte final da mostra (pela qual passei quase correndo), algumas estranhas instalações bem contemporaneazinhas. O curador se defende:

A exposição faz um percurso por um século de arte produzida na França e levanta as questões das diversas e contraditórias manifestações do Realismo (...) E traz obras de artistas franceses e estrangeiros que produziram na França ou que por lá passaram. (http://masp.art.br/exposicoes/2009/franca/)

O problema é que os artistas apresentados na mostra que “produziram na França ou por lá passaram” não tinham lá muito a ver com “as diversas e contraditórias manifestações do realismo”. E segue o texto, tentando – sem muito sucesso – ser mais claro:

Estão incluídos trabalhos dos diversos movimentos e escolas, abordadas sob a perspectiva do Realismo - seus pontos de partida, suas versões e propostas. Nestes cem anos é possível perceber traços sucessivos de percepção do real: o tema desta exposição é a história desta interpretação, desta desfiguração e reconfiguração. (idem)

“Abordados sob a perspectiva do realismo” ? Agora entendi: se Picasso aparece na exposição é porque ele deve ser entendido na perspectiva do Realismo. Ou seja, o curador quer que contemplemos e tentamos entender a obra de Picasso sobre a perspectiva do real (que é a única perspectiva possível do Realismo). Trata-se aqui da mais pura tautologia, obviedade, porque o real no qual estamos imersos me parece um a priori para qualquer tipo de percepção ou interpretação da arte. E, quando começamos a desconfiar de empulhação, segue-se o coup-de-grâce: “o tema dessa exposição é a história desta interpretação”. Ou seja, o tema da exposição é como a arte se dedica à percepção do real sob diversas formas. Então tá. “Diversas formas”. Assim, o Realismo vai por água abaixo enquanto tema de uma exposição que resultou tão eclética.

Tento buscar uma explicação. A exposição ocorre no contexto do “Ano da França no Brasil”. Teria rolado alguma verba oficial ? Teria alguém proposto ao MASP, “Ei, vocês não querem participar do Ano da França no Brasil ? Vocês não tem algo a oferecer ?”. E daí o MASP inventou um tema francês fajuto, agrupou suas obras e... voilá, a verba chegou. E o mais irritante é que muitas das obras expostas são de fato interessantes, mas a sensação de que fui logrado me acompanhou quase desde que entrei. Acho que o público do MASP merece um tratamento um pouco mais sério.

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PS 1: Enquanto isso, no sub-solo do Museu, uma surpresa: a instigante, divertida e lúdica exposição de Vik Muniz. Recomendo vivamente.
PS 2: Claro, fui ao Masp terça-feira, dia de ingresso gratuito, o que só colaborou para o “efeito-multidão” ser mais dramático.
PS 3: A figura acima mostra uma tela de Gustave Courbet. Trata-se de um auto-retrato pintado em 1848 em que o artista demonstra uma assustadora semelhança com ninguém menos que o capitão Jack Sparrow.

12 comentários:

Willzito disse...

Como nao sou conhecedor d arte, se eu fosse ao MASP passaria batido tal detalhe. Pelo oq vc diz fica evidente q essa mistura ocorreu pelo $$.
Me lembra o sonho q temos ao entrar na faculdade (sonho d mudar o mundo), aí caímos no mercado e vemos q sonhar nao paga conta. Numa dessas palestras q tenho na faculdade, um cara ao ser questionado sobre seus valores disse q ele queria fazer obras audiovisuais com conteúdo, mas q hj ele era um "vendido"(repetia varias vezes e a galera ria), pois precisava sobreviver.
Quando vc cita o "Publico do MASP", eu fico imaginando qual público? Akeles q vao as terças pq eh d graça, as escolas q levam seus alunos(desinteressantes e desinteressados) pra verem pinturas q nao despertam nada, pessoas q amam a arte, entretanto soh vao uma vez ao Museu e nunca mais?
Devo dizer q quando cair no mercado, serei mais um vendido. Eh como dizem por aí: "When money talks, nobody walks"

Sentir disse...

Talvez o realismo seja apenas uma questáo científica, técnica....a arte realista, como qualquer outra, está na ilusão...na perspectiva, no indivíduo. Daí a sensação de distanciamento entre realidade e obra.

Renata M. disse...

Nossa, é mesmo! Parece o capitão Jack! Hahaha.

Que bom que vc gostou da exposição do Vik Muniz, tô ensaiando para ir visitá-la depois de uma tentativa frustrada no Rio de Janeiro, se suas críticas fossem negativas acho que desanimaria.

Como sempre o blog está excelente Gian! O recomendo para todos os meus amigos legais. Vivamente, claro.

Beijos!

Mariana Teresa disse...

Engraçado, li seu texto pensando o tempo inteiro "espero não ficar assim quando mais velha". Não é uma crítica. É que as vezes tentamos entender tanto o que nos rodeia, e explicar o porque do curador ter colocado isso do lado daquilo e etc que perdemos o real objetivo de ir ao museu: ver uma obra de arte e sentí-la, ignorando a fase em que foi pintada, ou por que está aqui e não na França ou no andar de baixo. Acho que é um pouco impossível, talvez. A primeira coisa que fazemos a chegar em um quadro é olhar de quem é e o ano em que foi pintado. Mas, será que a arte foi feita pra isso mesmo? Se o cara te enganou, problema dele. O que ele ganha com isso com certeza não deveria ser maior do que o seu ganho com a obra de arte.

Anna disse...

Adorei o post! :D imaginava que você ia fazer um post assim, depois da aula que você falou das pessoas que vão pra museu, passam batido nas obras pra chegar na rodinha de chopp e dizer "fui na exposição do Fulano".
Bom, deve ser porque o MASP está agora bem mais para ponto turístico de SP do que para museu em si (não que o Louvre não seja, mas no caso do masp, o aspecto "museu" se perdeu um pouco). Por causa da sua localização numa das avenidas mais bacanas de SP, tendo protestos diversos pelo menos 1 vez por semana na sua porta, sua arquitetura legal que todo mundo conhece, até de fora. Tem muita gente que vai pra lá e volta falando "Gente, fui no MASP!!" e não "Fui ver a exposição X, do MASP". Aí tem gente que vai lá e nem está muito interessada na exposição; os organizadores que sabem disso aproveitam. E outras pessoas se aproveitam também, como você disse, "ei, vocês não querem fazer isso?". Pessoal não tem muito o costume de ir museu por ir (seja de arte ou de outro tipo). Eu passava na frente do Museu do Ipiranga de segunda a sexta, por 2 anos, e a única coisa que eu via era ônibus escolares :|
Penso também se essa política do MASP afastou as pessoas que curtem arte mesmo (como deu uma afastada em você) e aí caiu num ciclo vicioso.

Gian disse...

Will: esse troço do dinheiro do MASP foi chute total da minha parte, não sei mesmo se a exposição do Realismo na França foi mero caça-níqueis ou não. Mas tem algumas pistas no ar.

S.: sem dúvida realismo "real" não existe mesmo. Uma FOTO, que retrata o real, já é uma construção (lembre os textos do Cartier-Bresson).

Re: Vá ver o Vik Muniz, sim, e obrigado por frequentar tão assiduamente o blogue.

Mariana: obrigado pelas frases de apoio e estímulo do tipo "deus me livre de ser como vc um dia" !!! Na verdade, a minha questão é: me venderam gato por lebre. Me disseram que era realismo, não era e me enrolaram na explicação. Pra mim tudo bem, eu me vingo escrevendo no blog. Mas o troço é DESEDUCATIVO para as massas que, parece, são o público buscado pelo museu.

Anna: MASP virou grife, tudo bem, não ligo se isso servir para atrair mais gente. O problema é que sendo grife, isso acaba esvaziando a experiência estética de ir ao Museu de arte. E, como disse acima, nessa exposição do realismo o público é meio que deseducado. (Aliás... vc entrou no Museu do Ipiranga ???)

Mariana Teresa disse...

Gian, sinceramente você não me pareceu muito preocupado com "as massas". Tanto é que o título do texto é "FUI logrado". Além disso, se você pensar no contexto "das massas" (da qual você, obviamente, se coloca de fora), ir ao museu significa ver o maior número possível de obras conhecidas e não ficar analisando o 'recorte histórico' como você, um ilustrado. Não sei se me sentiria enganada. A exposição é sobre realismo francês, ótimo, vamos ver quadros franceses (já que não posso ir até a França). Isso não deveria esvaziar a "experiência estética"! Ainda bem que tem gente indo ao museu, isso já é um grande passo pra nossa realidade!!! Eu entendi seu ponto de vista e até concordo em parte, mas o MASP e qualquer outro museu precisa de grande público, e defendo isso. Sem o público, o MASP estaria abandonado como tantos outros pontos culturais de São Paulo. Você não "foi logrado", tanto é que entende os quadros e suas épocas. Se o MASP precisa disso para atrair o público, é uma pena, mas tenho certeza que se "a massa" não fosse ao museu, ele não estaria como está hoje, afinal, os logrados são minoria.

Anônimo disse...

eu fui no MASP ver isso ontem! hehe tava mtoo cheio, nao entendi nada da exposição e alguns quadros nao tinham nada a ver, mas eu conversei em voz alta sobre cada um deles e me diverti bastantee! acho que eu sou o tipo de pessoa q vc não quer ver no MASP, gian! haha naooo.

helô beraldo disse...

Este blog é seu mesmo, Gianpaolo Dorigo? O melhor professor de história dos além-tempos de CPV? Quem fazia a melhor impressão do burguês-francês ridículo? :oD

Aqui é a Helô, sua sempre ex-aluna! Feliz por ver seus escritos, visitarei sempre!
Beijo!

Anna disse...

É, a galera acaba tendo um conceito errado do que é Realismo. Masp tá deseducando hahahahaha :(
Ah, entrava no museu sim! E na tumba do Dom Pedro também. Tem muita coisa informativa legal lá (acho legal que quase ninguém sabe que a tocha da tumba nunca apaga xD).

Gian disse...

Mari, fico com a impressão de que vc tá procurando pelo em ovo.

Helô, sim, sim, sim, eu mesmo. Obrigado por prestigiar o blogue!

Anna, um dia te conto a verdadeira história da tocha que "nunca" apaga.

Anna disse...

Ahhh conta ae conta ae :D
Lembro das histórias da titia Lucimara (que dava aula de história) dos símbolos maçônicos que tinha nas obras da independência. Dava vontade de ficar olhando, olhando, pra ver se achava alguma coisa.