sexta-feira, 17 de julho de 2009

Ainda o Beco...



(Completo o texto iniciado no último post, mantendo a distinção entre grafitti e pixação).

Pixação & Transgressão

Desde há muito está disseminada a idéia de que transgredir é bonito. A partir dos anos 60, com a crítica à sociedade administrada e a imbecilização do cotidiano, a transgressão passou a ser vista como forma de contestação. Meio século depois, a transgressão foi banalizada, esse discurso caiu no vazio. Na década de 1960 uma juventude trangressora tomou as ruas em nome de utopias; a luta fracassou e deixou no ar uma pergunta amarga: como destituir os poderes se de antemão já estava descartada a criação de novos poderes ? O movimento fracassou (nenhum sucesso era possível), as utopias não vingaram. Sobrou apenas o desejo de manter o comportamento transgressor, agora pintado com cores anarquistas.

Tal comportamento está presente nos grupos de pixadores, que orgulhosamente ostentam o nome libertário de “coletivos”. Certos pixadores rejeitam até o princípio da autoria: qualquer um do grupo pode assinar vício ou fds ou susto's, só para citar alguns dos mais visíveis. E, para fazer parte do coletivo, basta pixar, mais libertário que isso impossível.

Porém, a questão anarquista observada pelo viés da pixação, acaba expondo os limites do movimento. Uma sociedade é livre quando seus indivíduos não estão submetidos à opressão, por exemplo, das leis impostas pelo estado. Dessa forma, uma sociedade anarquista deve estar fundada na auto-disciplina e no respeito a valores comuns. O pixo enquanto forma de transgressão anarquista resulta na deterioração do espaço que deveria ser público. Ao invés de destruir o privado (que pode ser fonte de desigualdade etc.), o pixador destrói espaços que deveriam ser de encontro, de trocas, de sociabilidade; justamente aquilo que, supostamente, deveria ser valorizado. Curiosamente, espaços ultra-pixados são evitados pelas pessoas e freqüentados somente pelos pixadores. A criação desses espaços exclusivos através da pixação resulta no oposto do libertário, ou seja, um comportamente seletivo, excludente e, no seu limite, fascista.

Pixação & Deterioração

Falo de pixação enquanto deterioração não porque o pixo destrói prédios “bonitos”, que, afinal, são tão escassos em São Paulo. Simplesmente constato que pixação (ao contrário do grafitti) dá idéia de abandono e marginalidade. Daí para a atuação do crime organizado é um pequeno passo, e dada a situação de quase guerra civil que vivemos, o pixo vai efetivamente contra o que é de interesse coletivo.

Interessante pesquisa foi feita em uma universidade holandesa (Groningen ?), suas conclusões confirmam o que constatamos diariamente em São Paulo. O experimento foi realizado ao longo das estações (de arquitetura padronizada) de uma linha de trem de subúrbio. Em todas elas havia um estacionamento de bicicletas, encostado na parede do fundo da estação. Os pesquisadores retiraram todas as latas de lixo dos estacionamentos, pixaram as paredes de metade das estações e, em um determinado dia, deixaram nas bicicletas estacionadas um folheto de propaganda qualquer. Em seguida, observaram a reação das pessoas. Nas estações não-pixadas, quase 100% dos donos de bicicletas amassaram e guardaram o folheto de propaganda no bolso, provavelmente para jogar na próxima lata de lixo. Nas estações pixadas, cerca de metade dos donos de bicicleta amassaram a propaganda e jogaram no chão. Pixo da idéia de abandono, gera mais abandono e sujeira ainda.

Na Universidade de Columbia, um experimento semelhante com janelas quebradas: diante de uma fachada com janelas quebradas, as pessoas não se incomodam de jogar lixo. Ou seja: pixação destrói.

(“Ah, mas é bom criar sujeira para contestar a hipocrisia da sociedade burg...” zzzzzzzzzzzzzz... rrrrrrrrrooooonnnnccc... zzzzzzzzzzzzzzzzz...)

Pixação & Existência

Zezão dizia que começou a pixar seu nome para provar sua existência. Isso ocorreu na época em que trabalhava como moto-boy e, segundo ele, era uma pessoa invisível: não recebia bons dias, as pessoas fechavam o vidro do carro quando ele se aproximava. Os únicos que percebiam sua existência eram seguranças de banco, que invariavelmente deixavam-no preso na porta giratória, desconfiados de sua atitude (?) suspeita.

E aqui ele pôs o dedo na ferida. Pois vivemos cercados de pessoas invisíveis, pessoas próximas de nós, a quem nunca notamos a existência. Ou, o mais comum: notamos a existência, mesmo assim seguimos em frente, passamos reto. Quem está lendo esse blog provavelmente nunca foi invisível, mas, pergunte-se se já tratou alguém assim. Porteiros, empregadas, faxineiros, mendigos, pedintes... a lista é infinita. Diante da agressividade do nosso silêncio, como se queixar de um “grito de existência” na forma de pixo ? Como não ser tolerante com quem costuma ser vítima cotidiana da intolerância ? Portanto, viva o pixo existencial, desprovido de ideologia barata! Por mais destruidores que sejam seus efeitos, essa é a cidade em que vivemos, e a quantidade gigantesca de pixações em todas as paredes da cidade da testemunho de quantas pessoas estão gritando desesperadas, quantas pessoas estão em busca de expressão.

Daí uma pergunta: será que não é possível que essas pessoas se expressem de uma forma que vá além de por o nome na parede ? É aqui que a pixação pode virar grafitti.

Pixação & Estética

Há uma estética das letras rúnicas, agressivas do alfabeto da pixação paulistana. No Beco do Batman, um dos grafiteiros transformou a forma do pixo em um padrão agregado á sua pintura (foto acima). Poucos anos atrás, o Itaú Cultural na Av. Paulista passou por uma reforma e cobriu a obra com um tapume branco, divertidamente pixado com um padrão desse tipo. No Cemitério São Paulo, pixadores foram apresentados á arte em cerâmica e puseram seus rabiscos ao longo do comprido muro branco, em espaços simétricos, e o resultado foi surpreendente.

O ponto é: há um gigantesco potencial estético nos garranchos dos pixadores. Há uma enorme energia criativa – sob a forma de vontade de expressão – por trás da ação dos pixadores. Aliás, toda essa reflexão surgiu a partir dos alegres colóquios que se iniciaram com visitas à galeria Choque Cultural e, principalmente, à sua recém encerrada exposição de arte gráfica. Se a pixação for desprovida de um viés ideológico bobo, ela pode se converter, junto com o grafitti, em uma forma de arte singular. Pode até ajudar a definir os rumos de uma nova arte possível no novo milênio, após quase um século de crise da arte.

7 comentários:

Nahla Ibrahim Barbosa disse...

Pq q vc nunca me responde?

Gian disse...

Nunca reparei que nunca respondi.

Ops ! Respondi !

Unknown disse...

Mais um ótimo texto e na parte de Pixação & Deterioração é interessante ver que no metrô aconteceu isso... A insistência de manter uma aparência limpa, moderna e eficiente para o metrô, o pessoal da limpeza está sempre trabalhando, há latas de lixo em muitos lugares e as pessoas mantém essa limpeza, parece que por inércia...rsrsrs
Beijos

Unknown disse...

até entendo quando vc enquadra a pixação como agente deteriorador do espaço, porem descordo! acredito que a pixação vem como o contra-ataque estetico, tornado os espaços publicos (ou privados como vimos recentemente) em zonas autonomas temporarias (taz), livres da estetica da ordem imposta pelo estado, como o comentario da gessica fala: "as pessoas mantém essa limpeza, parece que por inércia" de fato isso acontece, quando a sociedade se depara com um espaço livre da estetica da ordem, suas atitudes se tornam muito mais verdadeiras e livres das obrigações morais impostas pelo estado.
o que quero dizer é que a sociedade segue as leis e regras pelos motivos errados, e a pixação vem para discutir esses motivos, apartir do momento em que a sociedade começar a praticar o bem coletivo em função simplesmente do bem em si, estaremos um passo mais proximo da anarquia utopica idealizada, e talvez nesse cenario a pixação não se faça necessaria, podendo se preucupar com outros objetivos como por exemplo:potencial estético nos garranchos..
mais por hora a violencia imagetica se faz necessaria

Sentir disse...

Interessantíssimo. Excelente conexão.
Espero o´próximo post. Será um " to be continued"??? Vai surgir uma tese desses posts??

Anônimo disse...

nossa, adorei os relatos dos experimentos sobre a influência do ambiente no comportamento das pessoas (rar não foi específico isso mas quem leu o post entende né) acredito fielmente nisso! as pessoas são menos porcas num banheiro que já está limpo! e outros mil exemplos.

sobre "Pixação & Existência", isso me lembra um vídeooo. http://www.youtube.com/watch?v=ZrDxe9gK8Gk é só um vídeo bonitinho que exige um pouco de paciência até a mensagem ficar clara

e eu não sei sobre esse negócio do futuro da arte estar no graffiti ou no potencial estético do pixo, huuuuum. não sei o que eles dizem para mim. acho que vou descobrir ainda.

Gian disse...

Gessica: juro que acho virtuoso manter a limpeza por inércia.

Raul: me parece que seu comentário tem muito jargão e pouca reflexão. Voltarei a esses assuntos em breve, pedirei uma resposta sua.

S.: vc sabe que há uma tese se insinuando por trás desses posts, uso o blog (e os alegres colóquios) para fazer o pensamento seguir em frente.

Tea: ou eles nunca dirão nada e eu estehja sendo otimista demais. Talvez o futuro seja outro.