Volta e meia brinco de Filosofia: escolho um tema (vá lá, um conceito) e exploro, torturo, tento ampliar seu alcance, tento fazer nascer a “faísca” de que falava Platão. Dessa forma, assumo a atitude filosófica de me perguntar sobre o mundo à minha volta e convido os leitores para fazerem o mesmo. Porém, como diálogo, o troço todo nunca avança muito: um link para “comentários” e o longo tempo entre pergunta e resposta acabam desanimando a todos. Tenho certeza que o blog tem mais leitores passivos que colaboradores, mas sei que os leitores passivos partem da leitura do texto para suas próprias descobertas, animando os seus próprios alegres colóquios. E é justamente por quererem avançar nas suas descobertas e alimentar sua reflexão sobre este ou aquele assunto, que muitos me pedem para abordar alguns temas específicos. Dentre estes, o inominável sempre aparece: pedem-me que fale sobre o amor. Mas, como diria o perplexo guerreiro viking em Asterix e os Normandos, “Como posso fazer algo que desconheço?”
[Interlúdio pop: durante 27 anos, René Goscinny e Albert Uderzo produziram 24 volumes de As Aventuras de Asterix, um verdadeiro monumento cultural do século XX. Além de soberbamente engraçados, cada álbum de Asterix gira em torno de um ou dois assuntos explorados de forma genial: sob a capa espessa de um humor anárquico, existe quase uma proposta de reflexão sobre conceitos. Em Asterix e os Normandos, por exemplo, “discute-se” o conceito de medo. Após a morte de Goscinny (o responsável pelos textos) a obra foi tocada apenas pelo desenhista Uderzo, que foi incapaz de manter o pique: os álbuns passaram a ser entediantes, com os personagens repetindo seus comportamentos como verdadeiros clichês, e com interesses de mercado meio óbvios por trás de cada novo título.]
Tateio sobre o assunto. Usei a palavra inominável (alguns diriam inefável) porque mal sei se o amor existe ou, no mínimo, sou incapaz de chegar a um entendimento sobre o que seja o amor. Sei que tem algo a ver com a atração que sentimos por uma pessoa, mas antes que eu possa entendê-lo, sou perturbado pelo fato de que tal atração quase sempre vem atrelada ao desejo de posse.
Por que não nos limitamos apenas gostar, por que existe também o desejo de possuir ? Qual o mistério que se esconde por trás do desejo de posse que vem junto de todo amor ? Pois me parece que é justamente isso que caracterize o amor: gostar + possuir. Talvez seja por isso mesmo que muitas vezes, quando nos referimos ao ato sexual, usamos o verbo “possuir”, muito mais transcendente do que “transar” (do que “comer” então nem se fala). E talvez seja por isso que gostemos tanto de histórias de vampiro, evidentes metáforas do amor, uma vez que falam da posse física e espiritual de uma pessoa, em um tempo infinito. Histórias de vampiro nos fazem crer que o amor de fato existe.
Aqui se abre o aspecto mais perturbador de toda relação: queremos que o amor seja correspondido, mas isso faz com que além de possuidores, sejamos ao mesmo tempo objeto do desejo de posse de Outro. Quando sabemos que alguém quer nos possuir, de alguma forma nos sentimos envaidecidos (amados), ao mesmo tempo em que lamentamos o risco de perda da liberdade. Se eu sou objeto da posse de alguém, corro o risco de deixar de ser quem eu sou, de perder essa identidade pacientemente (dolorosamente) construída ao longo de anos. Da mesma forma, quando queremos possuir, sabemos que, ao exercer o controle sobre o Outro, a pessoa amada corre o risco de deixar de ser quem ela é: uma vez tornada objeto de nossa posse, ela deixa de possuir as características que despertaram o amor.
Mas, é possível a atração entre duas pessoas sem o desejo de possuir ? Certamente que é, mas nesse caso não será chamada de amor, portanto trata-se de um tipo de relação que não me interessa como objeto de reflexão. Considerando, portanto, que o desejo de possuir seja indissociável do que chamamos de amor, é possível que duas pessoas se possuam sem se “destruir” mutuamente ? Em outras palavras, um amor correspondido é possível ?
Primeira resposta: não, o amor é sempre unilateral, platônico, até. Toda realização do amor implica em sua morte. Dante amou Beatriz, e uma prova incontestável de seu amor foi a Divina Comédia. Na obra, o poeta florentino consumou seu amor com Beatriz apenas em verso, descrevendo uma cena idílica nas nuvens do Paraíso, canto 31, em meio a um concerto de anjos. Sabemos que Dante jamais dirigiu sequer uma palavra a Beatriz na vida real, suspeitamos que se eles fossem amantes reais, Dante jamais perderia seu tempo escrevendo algo como a Divina Comédia, preferindo obviamente ficar com sua amada, “possuindo-a”.
Segunda resposta: sim, o amor correspondido é perfeitamente possível, pois a destruição de uma individualidade não deve ser vista como negativa. Aliás, ao invés de “destruição”, melhor seria pensar em “construção” de algo novo. No amor, construímos uma nova identidade, nos descobrimos amando. Impossível, não lembrar de post recente, sobre fuga. Amor tem algo de fuga, no sentido de deslocamento. Pois o amor verdadeiro deve nos completar: quando se ama, brilha o entendimento.
[Interlúdio pop: durante 27 anos, René Goscinny e Albert Uderzo produziram 24 volumes de As Aventuras de Asterix, um verdadeiro monumento cultural do século XX. Além de soberbamente engraçados, cada álbum de Asterix gira em torno de um ou dois assuntos explorados de forma genial: sob a capa espessa de um humor anárquico, existe quase uma proposta de reflexão sobre conceitos. Em Asterix e os Normandos, por exemplo, “discute-se” o conceito de medo. Após a morte de Goscinny (o responsável pelos textos) a obra foi tocada apenas pelo desenhista Uderzo, que foi incapaz de manter o pique: os álbuns passaram a ser entediantes, com os personagens repetindo seus comportamentos como verdadeiros clichês, e com interesses de mercado meio óbvios por trás de cada novo título.]
Tateio sobre o assunto. Usei a palavra inominável (alguns diriam inefável) porque mal sei se o amor existe ou, no mínimo, sou incapaz de chegar a um entendimento sobre o que seja o amor. Sei que tem algo a ver com a atração que sentimos por uma pessoa, mas antes que eu possa entendê-lo, sou perturbado pelo fato de que tal atração quase sempre vem atrelada ao desejo de posse.
Por que não nos limitamos apenas gostar, por que existe também o desejo de possuir ? Qual o mistério que se esconde por trás do desejo de posse que vem junto de todo amor ? Pois me parece que é justamente isso que caracterize o amor: gostar + possuir. Talvez seja por isso mesmo que muitas vezes, quando nos referimos ao ato sexual, usamos o verbo “possuir”, muito mais transcendente do que “transar” (do que “comer” então nem se fala). E talvez seja por isso que gostemos tanto de histórias de vampiro, evidentes metáforas do amor, uma vez que falam da posse física e espiritual de uma pessoa, em um tempo infinito. Histórias de vampiro nos fazem crer que o amor de fato existe.
Aqui se abre o aspecto mais perturbador de toda relação: queremos que o amor seja correspondido, mas isso faz com que além de possuidores, sejamos ao mesmo tempo objeto do desejo de posse de Outro. Quando sabemos que alguém quer nos possuir, de alguma forma nos sentimos envaidecidos (amados), ao mesmo tempo em que lamentamos o risco de perda da liberdade. Se eu sou objeto da posse de alguém, corro o risco de deixar de ser quem eu sou, de perder essa identidade pacientemente (dolorosamente) construída ao longo de anos. Da mesma forma, quando queremos possuir, sabemos que, ao exercer o controle sobre o Outro, a pessoa amada corre o risco de deixar de ser quem ela é: uma vez tornada objeto de nossa posse, ela deixa de possuir as características que despertaram o amor.
Mas, é possível a atração entre duas pessoas sem o desejo de possuir ? Certamente que é, mas nesse caso não será chamada de amor, portanto trata-se de um tipo de relação que não me interessa como objeto de reflexão. Considerando, portanto, que o desejo de possuir seja indissociável do que chamamos de amor, é possível que duas pessoas se possuam sem se “destruir” mutuamente ? Em outras palavras, um amor correspondido é possível ?
Primeira resposta: não, o amor é sempre unilateral, platônico, até. Toda realização do amor implica em sua morte. Dante amou Beatriz, e uma prova incontestável de seu amor foi a Divina Comédia. Na obra, o poeta florentino consumou seu amor com Beatriz apenas em verso, descrevendo uma cena idílica nas nuvens do Paraíso, canto 31, em meio a um concerto de anjos. Sabemos que Dante jamais dirigiu sequer uma palavra a Beatriz na vida real, suspeitamos que se eles fossem amantes reais, Dante jamais perderia seu tempo escrevendo algo como a Divina Comédia, preferindo obviamente ficar com sua amada, “possuindo-a”.
Segunda resposta: sim, o amor correspondido é perfeitamente possível, pois a destruição de uma individualidade não deve ser vista como negativa. Aliás, ao invés de “destruição”, melhor seria pensar em “construção” de algo novo. No amor, construímos uma nova identidade, nos descobrimos amando. Impossível, não lembrar de post recente, sobre fuga. Amor tem algo de fuga, no sentido de deslocamento. Pois o amor verdadeiro deve nos completar: quando se ama, brilha o entendimento.