quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Fugir




Anos trás precisei de documentos ( = provas) para um processo imbecil na justiça contra um certo estelionatário, na época proprietário de uma escola onde eu trabalhava. Naquela escola funcionava um caixa dois: os salários eram pagos “por dentro” e “por fora”, havendo inclusive duas contabilidades paralelas, uma legal outra ilegal. Eu achava curioso que os procedimentos eram idênticos nos dois casos, recibos, holerites e assinaturas para lá e para cá, mesmo na contabilidade paralela. A única diferença é que os procedimentos do caixa dois eram feitos todos em uma sala discreta, com portas abertas, é bem verdade, o troço todo era ao mesmo tempo secreto e do conhecimento de todos.

Percebi que se possuísse os documentos “secretos” do caixa dois teria um trunfo na justiça. Certa ocasião, fui à tal sala discreta da contabilidade e, quando peguei uma pilha de documentos para assinar recibos atrasados, perguntei à contadora: “Puxa, vocês não tem medo que alguém use esses papéis em um processo contra a escola ?”. A mocinha respondeu, “Ah, mas é por isso que esses papéis nunca saem dessa sala”. Foi o sinal. Larguei a caneta e, para sua surpresa, pus a pilha de documentos debaixo do braço e saí correndo pela escola.

Foi uma fuga maravilhosa. Ninguém poderia imaginar: um professor correto, correndo desabaladamente pelos corredores da administração, passando como um foguete em frente à sala do proprietário-estelionatário (que nada sabia do que se passava), atravessando a sala de espera, onde pais de alunos não entendiam o porquê da correria (claro, com a mocinha da contabilidade bufando atrás de mim). Passamos correndo pelo pátio, pegamos o corredor lateral que dava para a saída da escola, ela gritando “Pare ! Volte!”. Próximo ao portão, ela ainda tentou gritar para o porteiro que me detivesse: “Não deixe ele sair !”. Cumprimentei o porteiro, velho conhecido, alcancei a rua e parei, exausto. A mocinha, ofegante, me alcançou, mas já não era mais possível nenhuma ação. Apenas olhei para ela e para a escola atrás dela, onde algumas pessoas já olhavam pela janela, e me ocorreu que jamais voltaria naquele lugar.

Foi uma saída espetacular.

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Tento estabelecer claramente os significados de fugir e sair. O que diferencia um ato do outro ? A meu ver, sair dá idéia sobretudo de deslocamento. Mas o que faz esse deslocamento diferente do fugir ? Nos dois casos pode ser um deslocamento voluntário ou não, para longe ou para perto, tanto rápido quanto devagar. Em que circunstâncias uma saída passa a ser uma fuga ? Em outras palavras, do quê, exatamente, fugimos ?

Os gregos, com a perspicácia habitual, nos ajudam. A origem mais remota da palavra fugir vem de φεύγω (feugo), às vezes aparecendo como διαφεύγω , com o acréscimo da preposição δια- (através de, por meio de). Platão usa a expressão διαφεύγει με, no sentido de “isso me escapa”, ou seja, algo que ignoro. Em Isócrates, há πολλά με διαφεύγεν, que quer dizer “esqueci muitas coisas”. Aqui começamos a descobrir do que fugimos. Fugir significa não pertencer mais ao pensamento, o que põe em jogo o esquecimento. Na fuga, lidamos com a memória, saímos de uma situação ou de algo que não queremos mais que faça parte de nosso pensamento. Será que esse algo é uma parte de nós ? Quando fugimos, apagamos alguma coisa, criando assim um espaço em branco que pode ser construído talvez da forma que quisermos.

E é por isso que existe algo de transcendente em toda fuga. A fuga deve ser dramática, não existe fuga insidiosa ou discreta, pois esta se confunde com o mero desaparecimento. Um fuga não deve ser o fim, mas o início, pois quando fugimos nos reinventamos. A fuga significa fazer tábula rasa do passado, gerando a possibilidade de começar de novo, e é esse o sentido que aproxima o fugir da filosofia. Na filosofia devemos nos perguntar sobre as coisas que parecem óbvias, mas que descobrimos que não são: toda filosofia parte da fuga do senso comum, do mero entendimento das coisas ao nosso redor como dados.

Porém, às vezes pensamos estar fugindo quando simplesmente não enfrentamos. Pois há aqueles que fazem da fuga um modo de vida, e isso acaba impedindo a criação de qualquer coisa, ou mesmo a constituição de um eu. Nesses casos, no espaço em branco deixado pela fuga constrói-se um nada avassalador.

17 comentários:

Will disse...

Ainda sobre o topico anterior e a resposta dos q comandam e a sua replica: "..do meu pequeno porém sólido currículo". Tem uma frase feita q vc conhece bem "A modestia eh a humildade do hipocrita bla bla bla" Chopenhauer(nao sei escrever o nome dele). Se seu curriculo eh pekeno, o nosso entao eh NANO. Obrigado por alimentar minha auto baixo nano estima.... Quanto a sua fuga, da metada pra frente do texto vc dá uma aula, no começo vc nos ensina como fugir!! Vc realmente correu ou foram passos rapidos?? Uma amiga minha fez isso tb, mas teve q devolver os documentos pra nao ter problemas na justiça.... Vc ganhou afinal?

Renata disse...

Gian!
Nossa, fiquei imaginando a cena de você estar fugindo da moça. Hahaha..
O que eu gosto no seu blog é que você começa os posts com essas histórias, e no fim.. Uma super reflexão.
Como naquele sobre vinhos e homens. Adorei :)

Beijos!

Unknown disse...

Na minha opinião, fugir implica perseguição. Uma idéia ou conceito pré-estabelecido pela sociedade por um consenso te persegue e você 'foge' dele, quase sempre criando um novo ponto de vista. Se você busca algo e se essa busca exige algum esforço, o objetivo 'foge' das suas mãos. É completamente diferente de saída, que não implica pressão nenhuma. Saída, por si só, pressupõe deslocamento livre. Fuga é um tipo de saída, porém que exige conflito. Estou errada?

Sentir disse...

tirando a visao pessimista...a fuga te faz reinventar..seja uma outra vida, um outro emprego, um outro eu.
Abandono do velho te permite novos mundos.
Pura coincidencia, o meupost.

Roberta disse...

Nossa! "Déjà vu" de personagens, lugares e tempo. Do primeiro ao último parágrafo.

Anônimo disse...

nossa gian, eu senti mto forte esse post! =]

Will disse...

Uma coisa q lembrei>> O heroi eh o covarde q nao teve tempo d fugir. Reli o post ouvindo Whisper of a Thrill(Meet Joe Black), milhares d explicaçoes e pensamentos me ocorrem, porem nao consigo expressa-los, por isso fujo =)

Daisy K. disse...

Ri muito imaginando sua fuga, Gian.

Eu sempre tinha pensado na fuga no sentido de não enfretar como você diz. Talvez nunca teria ocorrido essa outra maneira de ver uma fuga. (Nada como aprender algo novo sempre, ahaha) Obrigada! :)

Gian disse...

Will: nem me venha com esse mimimi de baixa auto-estima, meu currículo é obviamente maior que o seu porque eu tenho 85 anos de idade e vc tem 12. Sim, eu realmente corri, a idéia era essa, fazer algo escandaloso. Não ganhei na Justiça, apenas fiz um acordo. Minha paciência é mínima para lidar com fóruns e engravatados em geral, o tal processo levaria anos e era bem mais complexo do que fiz crer.

Caroline: acho que está certa em atrelar “conflito” a fuga. Nos últimos dias, andei pensando e acabei acrescentando “medo” ao conceito. Fugimos quando temos medo; o tal conflito, se mal resolvido pode gerar consequências que dão medo. Oras, por trás do medo há o desejo de preservação: fugimos para permanecer vivos.

S.: Li com gosto seu post, vc sabe.

Ro: Dejá-vu desde o primeiro parágrafo é ótimo, e me desculpe pelo dejá-vu dos demais.

Tea: Não há dúvida que “estar fora do ar” tem algo de fuga, resta saber em que sentido.

Pierri disse...

Há uma vontade comum de fugir em momentos de crise... e as vezes não é nem pelo medo de enfrentá-la, mas sim, pelo tempo que ela nos sugere. Acho que aí que está a maior transcendência da fuga: o tempo e o espaço criados, propícios para a observação, reflexão e análise de qualquer que seja o problema...
Chega um momento quando não há mais do que fugir. Nota que não há mais a fronteira entre o observador e observação. Que todas as saídas já foram pensadas. Que aquele momento foi passageiro e, a partir daí, o que quer que faça será uma atividade de fuga!!! Eis a hora da ação, de lutar com a Realidade. Insignificantemente armado com um colírio Moura Brasil, um cartão telefônico com 20 unidades e você já não lembra mais de nenhum número de cabeça pra quem ligar!

Unknown disse...

Oi Gian!
Não sei se fujo um pouco do assunto, mas e a fuga de si mesmo? O cansaço de certas manias, rotinas e pensamentos que nos dão um sentimento estranho de querer sair de si e mudar algo... seria uma fuga e ao mesmo tempo uma busca?... As vezes uma coisa mais do que a outra...

Rebecca disse...

Oi Gian,

Mais um texto profundo e cheio de significados a serem explorados... vai da sensibilidade de cada um...

Gostaria de que falasse sobre amor, simplesmente, amor...o do tipo que mais gosta...

Beijos de sua ex-aluna (anglo2008) e eterna admiradora.

Anônimo disse...

Excelente reflexão, professor, muito interessante. principalmente a diferenciação entre a fuga 'construtiva', na qual partimos para uma reinvenção ou preparação, e a fuga 'destrutiva', aquela que decidimos não enfrentar e acaba inviabilizando "a constituição de um eu".

É também interessante ver o conceito de "fuga", que o senhor analisou, no ideal militar. A 'fuga construtiva' seria uma retirada estratégica, na qual fossem reorganizadas e reelaboradas as estratégias. Já a 'destrutiva', seria algo como a deserção, o não enfrentamento do inimigo. É interessante perceber como ambas estão ligadas com a honra, o soldado honroso reconhece que não possui meios no momento de vencer e faz uam fuga estratégica. Já o soldado desonroso resolve não enfrentar o inimigo e foge.

"O soldado melhor parece morto na luta do que livre na fuga."
- Miguel de Cervantes.

Não sei se meu comentário é válido, mas foi a relação imediata que fiz ao ler a sua reflexão.

Pedro, aluno do Anglo Tamandaré (2009)

Gian disse...

Pierri (é assim mesmo?): essa idéia da fuga como capaz de redefinir (ou de criar) tempo e espaço não sai da minha cabeça desde que li seu comentário. Acho que é uma dimensão essencial da fuga que vc percebeu bem melhor do que eu.

Gessica: sim, acho que é isso mesmo, está bem dentro do espírito do que eu penso sobre o assunto.

Rebecca: pense que talvez eu esteja justamente falando de amor, desde que comecei o blog, o tempo todo.

D.Pedro (adoro os nicks nesse blog): bastante isntigante seu comentário, dentro da prática militar é isso mesmo. Me pergunto se não há alguma reflexão nesse sentido, digamos, em Clausewitz.

Anônimo disse...

Eu procurei alguma coisa do Clausewitz para citar aqui, mas na wikiquote não há nada sobre o assunto. Até achei a obra dele em inglês disponível, mas o voluime era imenso, são seis livros, não?

Mas o quepude perceber é que essa quetsão de honra é algo perdido no tempo, não? Parece que depois da segunda guerra, a Honra deixou o ideal das forças militares, restanto hoje poucous resquícios como as penalidades sobre a deserção.

Quanto ao nick, é por uma questão de ideais, eu tinah um blog para falar mal da república no Brasil.

Rebecca disse...

Verdade...mas gostaria de ler um texto seu mais objetivo, e subjetivo ao mesmo tempo, sobre o tema...

Obrigada por sua resposta,Gian. Fiquei feliz!
Bjs

Ivanovsk disse...

Gostei do seu blog,Gian. Nem sabia da existência dele antes de ir à sua aula de filosofia.Bom saber!

Porra!Demais essa sua atitude de sair correndo com os documentos. kkkkkkk
Notei uma frase em particular que vc escreveu:"Foi uma fuga maravilhosa". Quero comentar sobre isso.

É interessante que a fuga sempre traz uma sensação de alívio, de tranquilidade, mesmo que às vzs efêmera. No seu caso eu definiria como uma anti-fuga o que fez.Porque vc estava fugindo de fazer isso havia tempo, de repente parou de fugir e teve a atitude que julgava certa e que,creio eu, te trouxe alívio.Então pra mim foi o fim da fuga essa sua ação.
Fugir é realmente um termo muito amplo, dá pra gente discutir isso por muito tempo.Mas outra coisa que me chama atenção é que ao mesmo tempo que traz alívio,traz medo,dor,sentimento de fraqueza.Tudo isso está associado ao "fugir".Medo(durante a fuga,de não conseguir completá-la.De ser pego,interrompido).Dor e sentimento de fraqueza(quando se foge de algo que se deseja.Acho q vc já chegou a comentar isto aqui,que o medo está ligado ao desejo.Pra mim o medo também está ligado a ignorância, uma vez q tememos e tendemos a fugir de coisas que desconhecemos,sendo que,muitas vezes,descobrimos depois que essa tal coisa não tinha nada que pudesse nos trazer medo.A gente cria o medo por ignorância e fugimos(no sentido negativo) por ignorarmos o quanto podemos crescer se deixarmos de fugir.
O que mais me deixa intrigado é o quanto muita gente vive fugindo, deixando para amanhã as coisas que as podem fazer felizes.E confesso que tenho medo também de fazer isso.

Valeu pelo blog e pelo espaço pra comentar.Vou comentar mais vezes e tentar ser mais sucinto das próximas vezes. hahahaha
Gostaria que você escrevesse sobre o medo. Que é um assunto muito interessante também,isso se já não escreveu no seu blog.Não sei porque não li tudo ainda.


Ivan, seu aluno da Tamandaré.