domingo, 2 de agosto de 2009

Senzala




Para quem foi para Ouro Preto, uma foto da senzala da Casa dos Contos, tal como era antes do verdadeiro crime museológico que presenciamos. Segue abaixo uma cópia da carta que enviei para a direção da Casa dos Contos no ano passado e que, como vimos, acabou não resultando em nada.


Ouro Preto, 15 de julho, 2008

Para:
Direção da Casa dos Contos
Centro de Estudos do Ciclo do Ouro
Ouro Preto, Minas Gerais

Prezado senhor,

Como professor de História do Curso Anglo de São Paulo (centro de excelência na preparação para vestibulares desde a década de 1950), tenho tido oportunidade de visitar a Casa dos Contos com grupos de alunos nos últimos dez anos. Trata-se, sem dúvida, de um dos pontos altos da viagem anual do Curso para as cidades históricas de Minas Gerais e sempre me chamou atenção o cuidadoso trabalho de restauração e exposição aí realizado.

Recentemente, tive a surpresa de constatar que a senzala foi transformada em uma sala de exposições, completamente tomada por mostruários e vitrines contendo uma infinidade de objetos que, apesar de bastante interessantes, acabaram por “matar” aquele espaço, tão significativo no conjunto da edificação.

O espaço vazio, silencioso e sombrio da senzala sempre foi um local privilegiado para a evocação da trágica experiência da escravidão e, mais de uma vez, observei meus alunos adolescentes em momentos de profunda introspecção (e, certamente, reflexão) diante do sentimento de ausência proporcionado por aquele espaço.

Agora, infelizmente, a senzala se encontra paradoxalmente cheia (de objetos) e vazia (de significado). Sua singularidade foi perdida: a quantidade excessiva de objetos expostos não apenas é desnorteante como desvia a atenção da própria senzala, hoje transformada em uma sala como outra qualquer. Seus mostruários evocam as vitrines dos afamados “shopping centers”, transformando uma experiência historicamente densa em um mero simulacro da experiência do consumo: a história deixa de abrir uma possibilidade de reflexão e dá origem à uma atividade banal, empobrecida. (Insisto: essa perda de sentido contrasta com a própria riqueza dos objetos expostos que, francamente, devem ser retirados daquele espaço).

Impossível não lembrar do conceito benjaminiano de aura: “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja”. A de senzala foi jogada no lixo, a experiência de uma visita à Casa dos Contos é hoje bem menos interessante do que outrora. E, para os que a conheceram no passado, trata-se de uma experiência quase angustiante.

Acredito que a Direção da casa dos Contos levará em consideração minhas observações, no seu objetivo de preservar a memória de Ouro Preto, compreendendo e valorizando a História e a preservação da memória não como espetáculo, mas, sobretudo, como instrumento de reflexão.

Atenciosamente,

Gianpaolo Dorigo

- Bacharel e Licenciado em História pela Universidade de São Paulo
- Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
- Bolsista do CNPQ junto ao Museu Paulista da USP (Museu do Ipiranga) em 1987-1989.
- Pesquisador visitante junto ao
Musée Royal de l’Armée et d’Histoire Militaire de Bruxelas, Bélgica (1990)
- Professor do Curso Anglo-vestibulares desde 1991.
- Autor de livros didáticos de História e Filosofia para Ensino Médio pelas editoras Scipione e Anglo.
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PS.: Sobre o termo "local de memória" (lieu de mémoire), conforme usei neste ano: trata-se de conceito de largo uso na historiografia francesa recente, cunhado pelo historiador Pierre Nora. O também historiador, inglês, Colin Jones explica: "Designa uma instituição ou local em que se focou a consciência histórica de um povo e que ao longo do tempo recebeu contínuas incrustrações da memória coletiva".

8 comentários:

Will disse...

Belissima carta, mas sera q eles entenderam metade pelo menos?
Deram resposta ou foi algo do tipo: "Estamos analisando suas sugestoes. Obrigado" "Vc eh muito importante para nós". Acredito q vc deveria ter pedido pros alunos todos escreverem uma carta cada um e enviar pra direçao.
Uma possivel justificativa seria a falta d $ e interesse geral do publico por Ouro Preto, se as pessoas soh vão visitar e nao gastam, nao traz beneficios a cidade, pode ser q colocaram 'souveniers' na senzala, utilizando o clima sombrio e apelo emocional, pra arrumar mais $.

P.D. disse...

Fui a Ouro preto com o anglo neste ano e de fato o local perdeu muito de sua riqueza, sei disso por ja ter visitado o espaco em outra ocasiao.Porem para mim diante da "destruicao" de um espaco ficam vivas algumas perguntas, qual o sentido do espaco agora ? E porque o publico possivelmente iria preferir um espaco sem sentido de fato ? Ate que ponto preferimos a ausencia de sentido em nossa paisagem e vida ?

Mariana Teresa disse...

Impossível esquecer a sensação ao entrar na senzala. Ao descer as escadas e enxergar toda aquela escuridão fica difícil entender que pessoas viveram lá. A crueldade é tanta que rasga o peito uma dor de culpa e indignação. A volta ao tempo foi dificultada com os objetos e ao transformar a senzala num mero local de exposição, conseguimos disfarçar melhor as emoções e a crueldade do homem ao escravizar um ser humano.

Infelizmente disfarçamos diariamente essa crueldade com as vitrines nas ruas desviando o caminho ao encontrar um ser humano pedindo esmola.

Encarar a crueldade que corre no nosso sangue é muito difícil... Senti culpa e vergonha de ser como sou, até no sentido físico.
Pensar que a provável minoria dos visitantes são descendentes dos que viveram lá é algo para se pensar também.


Sei lá, talvez eles nunca tenham chegado a essas reflexões e cabe a cada um vasculhar o sentido disso tudo.

Unknown disse...

Perdeu-se muito da mágica desse local, realmente! Mas ainda temos aquela gruta para trazer a tona um pouco da angústia daqueles que sofreram tanto. Sentir mesmo que por segundos que seja algo que nunca sentimos antes. Sem palavras pra descrever tudo o que ocorreu naqueles dias em que estivemos em Vila Rica. Viagem sensacional!

Anônimo disse...

Concordo plenamente com o Gian, como já havia o feito em Ouro Preto. Na verdade, a visita à gruta, quando comparada à experência na senzala, já bastaria para tornar irrefutáveis as suas palavras. Por isso mesmo, Gian, gostaria de propor que, se possível, você também publicasse, ao menos parcialmente, as respostas dadas pela direção da Casa dos Contos. Estou curioso para saber quais são os argumentos e os porquês utilizados pelos responsáveis para simplesmente em nada alterar uma situação, como tão bem descrita por você, inaceitável.

Tomaz

Gian disse...

Resposta da Casa dos Contos:

"A pedido do Gerente Regional E.F., que se encontra bastante demandado de trabalho em função do retorno de suas férias, envio a seguir considerações sobre a sua mensagem enviada em 28/07/2008 – considerações que foram por ele revistas.
Antes de qualquer comentário, gostaríamos de agradecer a sua atenção em encaminhar-nos sugestão para a melhoria na ocupação dos espaços da Casa dos Contos, mais precisamente da “senzala”. Estamos sempre abertos a críticas e sugestões dos visitantes, e procuramos sempre incorporá-las em nossa administração daquele espaço público.
Em relação às suas considerações sobre a atual configuração da “senzala”, com a exposição da Coleção Toledo, reconhecemos que não é a primeira vez que recebemos comentários de visitantes sugerindo adequações desse espaço.
No entanto, a imensa maioria dos visitantes que deixam seus registros nos nossos questionários de avaliação destaca a exposição da “senzala” como um dos pontos altos da experiência vivenciada na Casa dos Contos. A exposição da “senzala” constitui um dos maiores sucessos dentre as diversas atrações da Casa, sendo que diariamente são recebidos elogios pela exposição.
Reconhecemos o seu ponto de vista e o respeitamos. No entanto, não podendo agradar a todos, procuramos adequar a utilização dos espaços ao gosto da maioria dos visitantes, sujeitos obviamente às limitações materiais, de pessoal e orçamentárias de que dispomos (...) Diante desses esclarecimentos, agradecemos a sua crítica, que contribui para analisarmos a utilização dos espaços da Casa dos Contos.
Atenciosamente,
B.C.S. – Gerência Regional de Administração do Ministério da Fazenda"

Gian disse...

Meu comentário final:

"Prezado Sr,

Agradeço a atenção dispensada, e fico feliz com a forma como a administração da Casa dos Contos lida com eventuais críticas. Tenho certeza que esse tipo de diálogo mantido pela instituição certamente resultará em benefícios para o público visitante.

Todavia, alguns comentários ainda se fazem necessários a partir de sua resposta:

1) Sem dúvida a “imensa maioria” dos visitantes considera a exposição da senzala o ponto alto da visita, dando origem a “elogios diários”. A coleção atualmente exposta efetivamente é rica. Todavia, ela mata o espaço da senzala. O visitante simplesmente deixa de conhecer a senzala vazia, com todo seu poder de evocação da experiência da escravidão.

2) Os elogios diários, como presenciei, muitas vezes são frutos da incitação explícita dos guias. Quando visito a senzala da Casa dos Contos com meus alunos faço um belo discurso defendendo o meu ponto de vista e, em seguida, recomendo contra qualquer repetição de minhas críticas no folheto de “sugestões” eventualmente oferecido pela instituição. Sei que tenho capacidade de influenciar opiniões dos alunos, e não quero incitá-los a agir em função do que eu pensei sobre o assunto.

3) Quanto ao “gosto da maioria dos visitantes”: acho que a Casa dos Contos deve decidir se sua vocação é o entretenimento dos visitantes ou o cumprimento de uma função educativa. Acredito que partindo do meu pequeno porém sólido currículo – que inclui o trabalho com educação, além da formação acadêmica com especialização em Museus – tenho condições de emitir uma opinião um pouco mais consistente do que a dos grandes grupos de turistas que visitam a Casa dos Contos em busca de distração e poses fotogênicas.

De minha parte, encerro esse diálogo, com a certeza de que minhas opiniões mais uma vez serão encaminhadas e que seu conteúdo será objeto de reflexão pelos responsáveis pela instituição. Agradecendo ainda uma vez, despeço-me,

Atenciosamente (...) "

Daniel disse...

Gian,
Nunca fui à ouro preto porém entendi perfeitamente o sentido que oi perdido na senzala com a nova "decoração".
Concordo com sua sugestão e fico contente de que você tenha tomado esta atitude. Porém é com desânimo que leio a resposta do responsável pelo museu pois este episódio vem se repetindo cada vez mais. Fico triste, senão deprimido, ao pensar num futuro onde os verdadeiros valores são cada vez mais esquecidos ou deturpados.
Os organizadores do museu estão claramente voltados para a visão da indústria cultural de Adorno (sempre ele como voce diz). Ficou claro que você, uma pessoa estudada e capaz de emitir uma opnião consistente sobre o assunto, foi tratado como um ser quase que abstrato, sacrificado pelo museu para a formação de um espectador médio. Na visão do responsável do museu, a opinião do espectador médio que passa meia hora no museu, fica 30minutos no local , tira algumas fotos, compra algum souvenir e depois vai assistir Serginho Malandro na televisão é a que conta.
Você poderia me dar uma opnião sobre até onde será que isso vai chegar? Será que há um meio eficaz de impedir isso?

Um Abraço,

Daniel