domingo, 16 de agosto de 2009

De volta à Cidade




A força do dia fez com que eu me refugiasse numa caverna; no fundo havia um poço, no poço uma escada que abismava na treva inferior. Desci; por um caos de sórdidas galerias cheguei a uma vasta câmara circular, a muito custo visível. Havia nove portas naquele porão e oito davam para um labirinto que falazmente desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto) dava para uma segunda câmara circular, igual à primeira. Ignoro o número total de câmaras; minha desventura e minha ansiedade as multiplicaram. O silêncio era hostil e quase perfeito, outro rumor não havia nessas profundas redes de pedra além de um vento subterrrâneo, cuja causa não descobri; sem ruído, perdiam-se entre as gretas fios de água enferrujada (...)

No fundo de um corredor, um muro não previsto me barrou os passos, uma remota luz caiu sobre ele. Ergui os olhos ofuscados: no vertiginoso, no mais alto, vi um círculo de céu tão azul que pareceu-me púrpura. Alguns degraus de metal escalavam o muro. O cansaço me relaxava, mas subi, só me detendo às vezes para pesadamente soluçar de felicidade. Fui divisando capitéis e astrágalos, frontões triangulares e abóbadas, confusas pompas de granito e mármore. Foi-me assim concedido ascender da cega região dos negros labirintos entretecidos à resplandecente Cidade.

O texto acima descreve com incrível semelhança a primeira vez que me aventurei sozinho pela imensa rede de metrô de uma cidade grande e me perdi por alguns instantes. Na verdade, acho que prolonguei voluntariamente minha situação de “perdido”, saindo em estações diferentes para ter surpresas, pegando a linha errada para ver onde iria parar. A cidade era Paris, o ano 1990 (a rede de metrô é a da figura acima). Foi assim que descobri, por exemplo, a Linha 6, que de repente deixa de ser subterrânea e oferece aos passageiros que vão na direção de Étoile uma magnífica vista da torre Eiffel.

O fragmento citado, todavia, não tem nada a ver com metrô, pelo contrário. É a descrição fantástica que o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) faz da “cidade dos imortais” em um dos contos do livro O Aleph. Seja como for, a idéia de um labirinto em que câmaras idênticas se sucedem, ligadas umas às outras por túneis e caminhos subterrâneos chega a ser quase precisa. As estações do metrô de Paris são muito semelhantes entre si: longas plataformas ferroviárias, com tetos como se fossem seções de cilindro, cobertos de azulejos brancos de uma ponta a outra. A monotonia das paredes de azulejo branco é quebrada pelos painéis publicitários (e os painéis se repetem em todas as estações, ajudando a criar o aspecto labiríntico em que as câmaras são de fato idênticas) e por uma placa azul turquesa, onde está escrito o nome da estação em branco.

Aliás, os nomes das 380 (repito, trezentos e oitenta) estações de Paris por si só já são uma delícia. Nomes de lugares, nomes de pessoas, nomes históricos. Nomes de batalhas ! Há milhões de fantasmas por trás de algumas estações que têm nomes das batalhas da França: Bir-Hakim (1942, cinco mil mortos), Iena (1806, trinta mil mortos), Sebastopol (1855, setenta mil mortos), Alésia (52 a.C., talvez cem mil mortos). Porém, o que chega a ser engraçado (ou no mínimo inusitado) são as estações que foram rebatizadas, e acabam tendo dois nomes. Por exemplo, a estação Barbés-Rochechouart, que reúne o nome de um revolucionário de 1848, Armand Barbés, com o de uma aristocrata do Antigo Regime, Marguerite de Rochechouart.

Mas o post de hoje não é sobre nada disso, e sim sobre uma notícia da semana que passou, segundo a qual a prefeitura de São Paulo irá gastar, nos próximos anos, algo em torno de 4 bilhões de reais com obras viárias. Ou seja, com avenidas para automóveis. Tal volume de recursos seria suficiente para construir cerca de 20 km de metrô. Trata-se de uma notícia escandalosa.

Há um princípio do urbanismo, comprovado desde há muito segundo o qual as “vias criam o seu próprio tráfego”. A idéia que a construção de avenidas e cada vez mais avenidas serve para “desafogar” o tráfego é uma mentira atroz. Lembro da recente construção da famosa Ponte Estaiada – com seus cabos imensos, como se a cidade já não tivesse fios demais pendurados sobre nossas cabeças – que foi justificada como uma forma de levar o tráfego rapidamente de um ponto para outro e que imediatamente se converteu em um verdadeiro estacionamento a céu aberto nos horários de pico. O princípio do urbanismo que citei surgiu a partir das fracassadas experiências ocorridas em Nova York a partir da ação de Robert Moses (1888-1981), que planejou o desenvolvimento da cidade dando prioridade aos automóveis. Sem a mínima preocupação com conservação, Moses derrubava bairros inteiros e degradava outros tantos para abrir avenidas, pontes e vias elevadas, tendo iniciado suas furiosas atividades de engenharia já na década de 1920. Quarenta anos depois, o modelo estava esgotado e a cidade paralisada.

Na cidade de São Paulo ainda estamos nas mãos dos carros, e décadas seguidas de abertura de avenidas asfaltadas não resolveram o problema do tráfego. O que é evidente, pois o problema de circulação não se resolve com automóveis (e um dia as gerações futuras irão rir de nós, constatando que para nos deslocarmos do ponto A até o ponto B levamos junto 700 kg de ferro, aço e borracha, emitindo poluentes no processo). Avenidas, obviamente, tem um efeito eleitoral magnífico, pois tem imensa visibilidade: 100 km de avenidas são mais visíveis que 20 km de metrô, dando impressão de que o prefeito construtor de avenidas asfaltadas é um sujeito que “faz” as coisas.

Os argumentos mentirosos para justificar tal uso imbecil de recursos são infindáveis: “Metrô é obrigação do Estado e não da Prefeitura”, repetem os sucessivos prefeitos, assumindo publicamente sua omissão. “Metrô leva muito tempo para ser construído, enquanto o problema do tráfego é imediato”, tal argumento tem sido utilizado há décadas para justificar a falta de iniciativa. De fato, se 30 anos atrás os recursos tivessem sido destinados ao metrô e não aos minhocões da vida... Mas o argumento do tempo que leva a construção do metrô aponta para outra tragédia: uma infinidade de avenidas asfaltadas pode ser construída durante um mandato de 4 anos, enquanto um simples trecho do metrô pode levar muito mais tempo, muito além do mandato de um prefeito ou governador. Portanto, estes jamais irão iniciar uma obra que será concluída por outro. E a cidade que se dane.

As mentiras não param. Os míseros 60 km do metrô de São Paulo estão divididos em cinco linhas... que cinco ? Existe UMA linha de metrô em São Paulo, a número 1, azul, Tucuruvi-Jabaquara. A linha 2, verde, é um mero ramal (nove estações) e a linha 3, vermelha, é apenas a adaptação de trilhos que já existiam na superfície desde há muito. Já a linha 4, amarela, prevista para 2010 (claro, ano de final de mandato do governador candidato à presidência), vai bater dois recordes negativos: maior tempo de construção e maior distância entre estações (aliás, terá somente 7 estações novas, sendo portanto mais um simples ramal). Finalmente, existe a linha 5 lilás, que leva do nada a lugar nenhum em 6 estações.

É uma vergonha. Todo o planejamento e construção do metrô de São Paulo desde a inauguração é prova de uma incompetência feroz, bem como da submissão do interesse público a ambições mesquinhas. Comparemos com outras cidades, que tiveram metrô inaugurado mais ou menos na mesma época que o de São Paulo (1974): Seul, hoje com 287 km em 10 linhas e Cidade do México, com 202 km em 11 linhas. E são linhas reais, e não de mentirinha como as nossas. Em nome de uma carreira política, destrói-se a cidade.

Defendo radicalmente o metrô porque é a única alternativa que temos. E porque em um transporte coletivo minimamente civilizado como o metrô, podemos nos livrar do isolamento destruidor (e quase assassino) dos carros, multiplicando as trocas e os encontros, ou seja, praticando o “viver junto” que é o princípio mais essencial e prazeroso das cidades.

12 comentários:

Unknown disse...

A primeira linha de metrô em Tokyo foi a Yamanote que é a que tem formato circular e alcança os pontos mais importantes da cidade (Shinjuku, Ikebukuro, Ueno, Tokyo, Shinagawa,Shibuya sendo os principais) além de conectar-se com as demais de metrô e trem, foi consequencia da unificação do país no final do século XIX.

Resumindo: os japoneses pensaram em construir um metrô logo após a unificação e nos brasileiros pensamos no que? Nem sei direito o que foi feito por aqui, muita ignorância, rs.

~Carol-chan

Sentir disse...

Nao é a toa que jornalista nao precisa de registro.

Gostei das pinturas.
Gostei da articulaçao.

Estava com saudades de ler coisas reais com boas argumentaçoes e divertidas

Gian disse...

Folha de São Paulo de hoje: ampliação da linha 5 do metrô atrasa (de 2010 para 2011), trem do aeroporto de Cumbica até o Centro atrasa (de 2010 para 2012), trem leve de Congonhas até o metrô São Judas atrasa (de 2010 sabe-se lá pra quando).

Enquanto isso, as obras da "nova" marginal Tietê vão de vento em popa.

Anônimo disse...

Gian, qntas catracas tem uma estação de metro em Paris?

Anônimo disse...

Esse, na minha opinião, é o maior problema da política do Brasil. Governantes que tomam as famosas medidas eleitoreiras para se garantirem nas eleições seguintes.

Mas, infelizmente, não vejo nenhuma solução para isso. É uma herança antiga de nossa cultura (?) politica e parece que não importa quem nós coloquemos no poder (se ainda formos nós), o próprio poder corrompe.

E eu penso se, finalmente, tivéssemos uma linha de metrô maior(não com 380 estações, não devemos ser tão ambiosos), teriamos por ironia muitas delas com nomes dos ilustres que tanta adiaram a expansão dela ficaram famosos por suas obras eleitoreiras.

Emy disse...

380 francesas X 55 brasileiras. Ahhh vai, estamos quase lah!

E eu nunca havia prestado atencao aos nomes das estacoes: em vez de batalhas, colocamos os times de futebol (corinthians-itaquera, palmeiras-barra funda, portuguesa-tiete)e bairros com nome de pessoas ou santos. Para as proximas inauguracoes...Santo Sarney, Santo Collor. Uma ao lado da outra!!!

Por mais que as 18h na Seh seja quase impossivel, eh um transporte mais rapido e seguro se comparado a outros.
Espero que quando eu for gente grande, deixe meu carro na garagem, e possa me perder nos emaranhados metroviarios paulistanos.

Daniel disse...

Boa tarde Gian,
Li e gostei muito do seu post mais uma vez, porém não concordo tanto com o tom das críticas do metrô de são paulo.
Acredito sim que as estações deveriam ser mais próximas do que realmente são porém não podemos chamar a linha verde de um mero ramal. Ela nos leva, de uma ponta a outra, a lugares muito, mas muito distantes em 10 minutos.
Também temos que elogiar a segurança do metrô, quase não se houve falar de pessoas assaltadas no metro e é muito mais seguro do que se compararmos ao perigo que há em ser abordado na rua ou no semáforo.
Outro elogio vai para a qualidade dos trens do metrô em si. Eu não sou muito viajado mas ja andei de metro em Lisboa, Buenos Aires e Toronto e posso afirmar que a qualidade supera aos das 3 cidades facilmente.
Bom é isso ai. Não sei se você é de aceitar sugestões de tópico mas gostaria de ver um dia um post dedicado à discussão de Ética e sobre a legalização ou não da maconha.

Um abraço!

Luana Harumi disse...

Hum, isso me deixa nostálgica..

Gian disse...

S.: Que pinturas ?

Emy: A existência de um "emaranhado metroviário paulistano" é quas eum sonho.

Daniel: Oras, eu não critico o metrô, mas a FALTA de metrô. É justamente pela sua eficiência, limpeza e segurança que eu o defendo em comparação com outras formas de transporte. E se a linha verde de fato nos leva rapidamente de uma ponta a outra da cidade mesmo sendo um mísero ramal, imagine se ela tivesse o dobro de estações, cobrindo o dobro da distância.

Luana: Nostálgica de quê ?

sumasumares disse...

O mais triste disso tudo é que provavelmente a solução pra esse problema vai ser algo que só outras gerações vão ver.
Eu acho uma pena, porque afinal de contas São Paulo é uma cidade que tem muitas coisas bonitas, que acabam sendo encobertas por causa de problemas como o trânsito e a violência. A ampliação do metrô não só aliviaria o trânsito, facilitando a locomoção pela cidade, como poderia também reduzir o número de carros nas ruas, deixando-as mais bonitas (ou melhor, mostrando que elas podem ser bonitas). Isso sem nem falar no "viver junto" que você mencionou, Gian, algo que praticamente não se sente em São Paulo. Em termos de relações interpessoais, a cidade é praticamente um enorme arquipélago

Luana Harumi disse...

Nostálgica da minha vida no interior, onde se pode observar carroças, tratores, bicicletas, patinetes pela rua, e, eventualmente, um cavalo pastando no parque. Tudo isso numa cidade que, embora seja habitada por 14 mil pessoas, chama-se Fartura.
De subterrâneo lá, só poços.

Unknown disse...

Oi, Django!

O metrô pode ser muito uma forma de transporte eficiente, uma solução pro transito de São Paulo, mas civilizado, não.
Não é só a Sé às 6 da tarde, é a Clínicas às 6 da manhã, é a Paraíso às 7 (desabafo). Hoje eu molestei a minha amiga de manhã, e quase perdi a primeira aula. Eu não acho que seja possível "viver mais junto" do que aquilo, e não achei que foi nada essencial ou prazeroso para a minha existência.