quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

"Foodies"



– Amanhã eu vou levar a Dani até Santos para ver a avó, daí eu aproveito e dou uma esticada até o Guarú pra pegar onda.

A informação foi gritada na mesa ao lado, por um rapaz muito grande, muito forte, que mal sentou à mesa e já começou a falar no celular em um volume muito maior do que o ambiente permitia. Muitas pessoas fazem isso, elevam o volume alguns decibéis quando falam ao celular. Outras – percebam, é muito curioso ! – aumentam o volume quando falam de algo de que se orgulham. Avós falando dos feitos dos netos, pessoas tolas falando de seus estilos de vida glamurosos, o Gian citando Nietzsche. (Sério, uma vez me vi fazendo isso e olhando para o lado, para perceber se as pessoas repararam na minha erudição. Quando me dei conta que ninguém sequer dava a bola para mim, percebi a arrogância).

O ambiente em que eu me encontrava era um restaurante excepcionalmente bom, mas também excepcionalmente cheio de novos-ricos. Suspeitei disso na primeira vez que lá fui, e agora confirmava meus temores na segunda vez que visitava o lugar. O grupo ao meu lado incluía não só o surfista de fim de semana, mas também uma mulher extremamente perfumada (que felizmente sentou na cadeira mais distante; seu caro perfume não iria estragar meu paladar) e uma terceira pessoa, mais discreta. Assim que o troglodita falastrão desligou o celular, virou para seus amigos de mesa e disse, no mesmo volume de sua conversa telefônica:

– Então.... amanhã eu vou levar a Dani para Santos para ver a avó, daí eu aproveito e dou uma esticada até o Guarú pra pegar onda.

O sentido todo dessa conversa não é, pela enésima vez, exibir minha intolerância (como sempre, coberta por uma espessa máscara de civilidade), mas observar que, de fato, existem infinitos fatores que fazem da refeição uma experiência prazerosa, e o entorno é fundamental. Como usufruir de um suculento côte de boeuf niçoise ouvindo gritos na mesa ao lado ? Como aproveitar um borgonha Dominique-Laurent sentindo o aroma de J’Adore que vem da perua mais próxima ? Uma grande refeição pede alguma seriedade e há outros fatores, além da comida, que são fundamentais no sentido de elevar a experiência. Por exemplo, recentemente concluí que apreciar uma refeição tem algo a ver com o suave estado de euforia provocado pelo vinho, uma vez que ele aguça os sentidos. Outro exemplo: uma grande refeição pede uma certa preocupação estética e, convenhamos, todos nós por aqui aprendemos isso com a culinária japonesa a partir dos anos 90.

Claro que eu gosto de gritar em certas mesas (ou debaixo de certas mesas, mas é melhor não entrar em detalhes aqui). Claro que os perfumes Dior são provocantes e sedutores. Claro que eu como coisas acompanhadas de coca-cola. Claro que eu como gororobas feiosas e gosmentas tipo vatapá, aliás eu adoro vatapá. Mas cada coisa em seu lugar, e comportamentos adequados nos locais adequados são uma expressão da tal civilidade que se confunde com arrogância. Uma refeição deve expressar essa civilidade, essa adequação ao local. Diria até que uma refeição pode ser uma experiência tão rica que, no seu apelo a todos os sentidos, se aproxima da Gesamtkunstwerk de Wagner, a obra de arte total. Sim, citações em alemão também têm algo de arrogante, fazer o quê ? Não dá mais pra voltar atrás e mudar o repertório da minha vida. Sigamos em frente.

Anthony Bourdain, meu cozinheiro pop preferido, nos diz coisas interessantes. Ele é um grande crítico da arrogância no trato com a comida, com a vida - claro, ele denuncia a arrogância enquanto belisca, por exemplo, um coronet de tartare de salmão, mas isso não vem ao caso. O fato é que Bourdain observa que, se perguntarmos a um condenado à morte qual seria sua preferência para uma última refeição, ou seja, qual o sabor que ele gostaria de levar como última lembrança terrena, a resposta jamais seria uma refeição gloriosa de um chef premiado em restaurante superior. Na hora H, todos dispensariam as novas sensações, refugiando-se no inesperado: o feijão com arroz que se comia na infância, o bolinho de chuva que a vó fazia, a pizza da esquina nos sábados à noite em Praia Grande quando não se tinha mais o que fazer. E aqui contemplamos o eterno retorno da bête noire do blog: a memória.

As grandes experiências gastronômcias brincam com nossa memória. Cada gosto que sentimos imediatamente provoca mil lembranças, e isso acontece mesmo quando não encontramos nele nenhum paralelo, nada para comparar. Nesse caso, estamos diante do “gosto novo”: não uma mistura de gostos antigos, mas algo essencialmente novo, e isso é uma experiência e tanto, pois cria-se uma nova camada na memória. Diante de uma experiência tão íntima como essa, chamamos as pessoas queridas, e compartilhamos com elas a nossa mesa, nossa memória, nossa intimidade. Há algo de profundamente social, de humano em uma refeição compartilhada. Tal reflexão nos faz entender melhor a experiência oposta, o significado dos refeitórios e dos “por quilo” da hora do almoço. Diante de simples colegas de trabalho, nada de intimidades; no lugar de uma refeição séria, apenas uma experiência alimentar quase que pré-histórica, pré-civilização: sair para buscar a comida, tendo como arma uma bandeja.

Volto ao episódio que iniciou o blog. Na mesa ao lado, um quarto convidado chegou, pouco mais tarde que o trio original. Logo que sentou, perguntou para todos na mesa, “E aí, o que vocês vão fazer no fim de semana ?”

O troglodita sorriu, preparando sua resposta.

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[PS: A foto do post não tem nada a ver, apenas cansei de abrir o blog e ver essa imagem deprimente logo abaixo, sobre trotes. Então, resolvi dar o primeiro passo no sentido de transformar o blog em Gesamtekunstwerk: apresentar uma imagem bela, na sua aparente simplicidade. A moça é Tang Wei, conhecida pelo filme Desejo e perigo. O fotógrafo, infelizmente, ignoro. Já o restaurante onde ocorreu o episódio citado é o Pomodori.]

7 comentários:

Daisy K. disse...

É, acho que quando se experimenta algo novo, há de querer compartilhar opiniões e sensações com pessoas queridas. Sem contar que ao compartilhar a memória fica mais rica pois ao querer repetir a experiência do que comeu, vai logo remeter as lembranças e acho que isso é o mais legal.
Talvez possa falar em personificar a "coisa" (nesse caso, a comida), pois você acaba lembrando de pessoas ou momentos passados em que possam se relacionar com a comida. E é engraçado como às vezes as pessoas dão mais valor a "coisa" do que a pessoa em si. Digo isso pois lembrei quando um professor citou que uma vez um palestrante teve um amigo que faleceu mas ele não chorou. Quando teve que subir ao palco e pôs um casaco (que era do amigo dele) as lembranças emergiram e ele chorou compulsivamente, não conseguindo nem falar.
Mas enfim, desviei do assunto. Acho que comer é uma das maravilhas que o mundo proporciona e experimentar comidas novas (ou ter a coragem de fazer isso) é incrível, pois sempre vai fazer uma nova memória.

Willzito disse...

Sempre tive vontade d experimentar novos sabores, especialmente da cozinha francesa, porem como nao falo frances nao saberia como pronunciar o nome do prato, alem d nao saber oq estaria pedindo. Nao adiantaria me apresentar a carta d vinhos, pois tb nao saberia qual escolher. Ja ouviu uma historia do pai q leva a filhinha pela primeira vez ao McDonalds e fica encantado com o lugar, nao sabe oq fazer e nem imagina q ha uma serie d codigos e tal? E atras do balcao yem uma menina simpatica q faz uma serie d perguntas e bla bla bla...Eh assim q me sentiria nesse lugar.
Nao acho q o troglodita em questao seja novo rico, geralmente pessoas assim sao mais acanhanadas, tem respeito pelos outros, apenas ricos(jovens) d berço acham q dominam o mundo. Conheço alguns ricos(novos) assim.
Gostaria q retsurantes finos tivessem codigos mais acessiveis, tipo: "Um numero 4 por favor". =]

Gian disse...

Daisy K, obrigado pela colaboração constante no blog !

Will, aproveite a Restaurante Week, vá aos lugares mais finos e pare de reclamar da vida, caceta !

Roberta disse...

¬¬ para os da mesa ao lado porque eram exceção naquele lugar! Visite o Due Cuochi (no qual só entrei e desisti de ficar) e aí sim se sentirá num bandejão BARULHENTO, lotado de narizes iguais e de silicones inflados... hauehuaehuae! Prefiro me concentrar nas nossas palavras de baixo volume e no nosso silêncio eloquente... E na massa fresca e nas trufas de chocolate!!!

Sentir disse...

a minha memória está ligada ao olfato muito mais que ao paladar.
O cheiro da casa da minha avó, o cheiro de uma pessoa amada, o cheiro da manhã, da madrugada, e assim vai....

Unknown disse...

Huheuehue...me divirto com essas suas cutucadas.
Não falo pra limpar o veneno porque senão a vida sem reclamações e FUXICOS perde a graça.

Ah, mas ir ao Itaim e não ver novos-ricos é impossível.E eles nem são tão ruins assim.Eles são fáceis de lidar, basta você ter a habilidade de se vestir bem, xeretar e fofocar coisas sobre AS MESAS AO LADO.

O único problema é que eu não tenho nenhuma dessas habilidades.E se quero comer fora,e me ver livre dessa gente,me contento(e como!!!) com um bom Chapadão , ou um bom Jabuti,a boa e velha Cantina 1020, ou mesmo um Metrópole, ou quem sabe um Estadão?

E nesses lugares, o barulho não é incômodo. Pelo contrário , é ele que traz o toque final de sabor à refeição. Não é mesmo?

Gian disse...

Engraçado esse seu jeito de escrever MEIO ESQUISITO. Até parece que vc pegou isso DE ALGUÉM. Mas eu não ligo, já me acostumei COM SUAS LOUCURAS. (Pior que vicia).

Mas vc está certa. Já pensou ir no Chapadão e comer uma feijuca em silêncio ? Não dá. A cada lugar, vestimos uma pessoa diferente, e a habilidade de fazer isso nos torna minimamente sociáveis.