quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Tá rindo de quê ?


Nada como viajar. Onde mais poderia recolher essas cenas ?

Cena 1: Estação do metrô Montparnasse, 18h, muito movimento. Na catraca, meu bilhete não é aceito, sabe-se lá porque. Ao dar meia volta para tentar passar novamente, causo um transtorno infinito na multidão em movimento. À minha frente, uma jovem senhora diz: “Passe comigo, rápido”. Hesitei por uma fração de segundo. Seu impulso de bondade significaria que eu seria obrigado a passar pela catraca dando-lhe nada menos que uma bela e inevitável encoxada. “Allez-y!”, disse ela, e eu fui, meio envergonhado, balbuciando um “Merci beaucoup”.

Cena 2: A agência de turismo, por um motivo qualquer, não fez a reserva para a visita ao Museu d’Orsay. Tendo chegado antes do grupo, me apressei em fazê-la. Infelizmente, o número de telefone do serviço de reservas não respondia, passei uma manhã inteira no Hotel ligando sem sucesso. Saindo à tarde, acho o número do telefone do Museu no bolso do sobretudo e resolvo ligar de uma cabine telefônica, assim, no meio do nada. Claro, dessa vez fui atendido. Infelizmente, não lembrava de meu endereço em Paris (somente o nome do Hotel), não tinha nem acesso a email com impressora e nem fax para receber o documento de reserva e, sem lápis ou caneta, não consegui sequer memorizar o número da minha reserva. Meio pessimista, desliguei o telefone. Pois a funcionária pesquisou os hotéis de Paris, ligou para meu hotel, confirmou que eu estava lá hospedado, enviou o fax e disse que eu não precisaria me preocupar com o número da reserva. No dia da visita, sequer foi cobrada a entrada no Museu, pois todos acreditaram na minha palavra de que era professor e aqueles eram meus alunos.

Cena 3: A doce Idália, nossa guia em Lisboa, conversando com o grupo do ano passado. Os alunos ficaram perplexos ao saberem que ela não cursou uma Universidade, mesmo sendo uma pessoa tremendamente culta, bem falante e com amplo domínio da história dos locais visitados e da cultura portuguesa em geral. Para uma certa classe média brasileira não ter ensino superior é quase sinônimo de ignorância.

* * *

Mas o que significa tudo isso ? Acredito que tais cenas exponham nossas fraturas. Na cena do metrô, a jovem senhora foi gentil e minha primeira reação foi maliciosa. Seu ato, impulsivo e irrefletido (dada a própria rapidez da situação) expressa um universo de valores: se um cidadão tem dificuldades, devo ajudá-lo. (Imagine a mesma cena no Brasil ? A jovem senhora jamais iria oferecer uma gentileza dessas, sob o risco de ter que aguentar no mínimo uma conversa fiada do tipo "Oi, você vem sempre nessa catraca?") Trata-se, sobretudo, de valores republicanos, fundados na igualdade e respeito mútuo dos cidadãos. Se não houver essa confraternização mínima na sociedade civil, como exigir algo do Estado ? Se trato os demais cidadãos como objetos a serem usados em meu benefício, como exigir que o Estado não faça o mesmo ? (Sem inocência: não sei se a jovem senhora, modelo de cidadania, agiria da mesma forma se eu não fosse branco e aculturado).

Daí a segunda cena, da moça do Museu que agiu como se deve: se um grupo de estudantes (ainda mais estrangeiro) quer visitar o Museu, a principal obrigação do funcionário é prestar toda ajuda possível. Que diferença de nossa prática tropical e anti-republicana ! Entre nós, o que importa é criar hierarquias, definir limites e afirmar uma posição de superioridade a partir desses limites. (Reflexo, talvez, da sociedade escravocrata, essa pesada herança que ainda carregamos e que fazia com que fosse fundamental definir uma demarcação dizendo: não sou escravo ou não sou mais escravo ou, melhor ainda, nunca fui escravo). Quantas vezes não observamos o funcionário que vê na sua função uma forma de exercer o seu poder, de estabelecer uma linha demarcatória ? No Brasil, o padrão do funcionário público (ou do funcionário, em geral, sobretudo quando uniformizado; a esse respeito, lembre-se do post “Pequenos Poderes”, http://bit.ly/cW2yfM ) é criar o máximo de dificuldades, podendo assim multiplicar ao infinito as situações em que ele exerce sua autoridade, vista como algo a ser usufruído. Se me humilham na vida cotidiana, eu me vingo sempre que estou por trás do balcão ou cada vez que visto meu uniforme.

Aqui chego onde queria. O trote, alegremente praticado nesses dias abafados de baixo verão. Sempre tenho vontade de perguntar aos calouros, quando se submetem sorridentes às humilhações mais atrozes: “Tá rindo de quê” ? A frase do ano foi recolhida pela Folha de São Paulo, em entrevista com calouro da USP. Em meio a sorrisos, o rapaz disse: “É meio humilhante, mas a gente agüenta porque, em compensação, poderemos fazer o mesmo nos calouros no ano que vem”. Sen-sa-cio-nal. Submeter-se à humilhação está justificado, pois dá o direito de humilhar outras pessoas.

Que estranho raciocínio é esse ? O sentido do trote leva à sua perpetuação, uma de suas justificativas essenciais é fazê-lo continuar existindo. A participação no ritual do trote, por parte dos calouros, significa: Estou dentro, existe uma linha estabelecida que foi ultrapassada. Agora, assim como o funcionário que inferniza a vida das pessoas, vou exercer o trote para deixar bem claro, Eu sou do grupo, eu posso aquilo que os outros não podem. Em última análise: eu agüento o trote porque isso me faz superior às outras pessoas. O fedor do fascismo torna-se subitamente muito forte. Como no fascismo, é punido quem não participa da verdade estabelecida (e dos rituais que visam celebrá-la, como o trote). Fugir do trote significa ser vítima de não-socialização, aquele que recusa o trote torna-se um pária na faculdade.

Finalmente, a última cena, que confirma a forma como fetichizamos a Universidade, como a consideramos um desses limites que ajudam a definir hierarquias sociais. “Como assim a Idália não fez faculdade ? Mas ela é uma das nossas ! Ela é tão legal, tão esperta...!” No mesmo registro, da fetichização da Universidade, acrescento uma constatação surpreendente, também recolhida em viagem: em Paris, turistas brasileiros, e somente brasileiros, tiram foto diante da Sorbonne, lá na entrada da rue des Écoles. Uma cena que surpreende alguns passantes, e que testemunho já há anos.

Cumprindo alegremente a função de incomodar a vida das pessoas (tarefa imprescindível para quem escreve), concluo: lembre-se disso em 2011, calouro feliz, ao perpetrar o trote você não se distanciará muito de um porco fascista.

11 comentários:

Alfafa disse...

Oi Gian.

Bom, quanto aos relatos da viagem só tenho uma coisa a dizer, que inveja, como queria ter ido e presenciado todas essas coisas. Agora falando sério, bom, no Brasil há mesmo esse fetiche por ensino superior, uma falsa sensação de que se o cara faz faculdade ele tá no ápice da piramide social. O problema é, com o alto numero de analfabetos funcionais e analfabetos de fato, se é que existe muita diferença entre eles, o cara que consegue adentrar em uma universidade passa a se ver como um privilegiado, e que ao ver seu nome na lista não só ganhou o direito de frequentar uma universidade, mas também o direito de deter alguns súditos. Talvez isso justifique o por que do déficit de mão-de-obra qualificada com curso tecnico, bom, curso tecnico não traz status, não te habilita ao "ápice da piramide".

Lembro de uma vez ter visto o Saramago comentar que o homem mais sábio que ele conheceu não sabia ler nem escrever. Tá, provavelmente isso foi mais uma demonstração de afeto do que um elogio à intelectualidade da pessoa, mas certamente que no Brasil isso causaria uma grande estranheza.

Quanto ao trote, foi a segunda vez que me submeti a ele, a primeira foi um pouco tenso, nada violento, mas foi isso que você relatou, serviu pra intimidar, pra demarcar quem de certa forma manda e quem obedece, e ele não pára por ai, o trote só termina quando se inicia o trote da turma seguinte, com o passar dos meses o calouro vai subindo na hierarquia universitária. Mas tirando esse lado obscuro do trote, acho ele necessário, o trote que sofri esse ano foi bem tinta e água, provavelmente culpa do alarde que a mídia vem fazendo em cima desse assunto, mas foi bacana, realmente foi uma integração, tinha veterano bem mais sujo do que muitos calouros, resumindo, foi algo agradável de se presenciar.

Voltando ao assunto da moça portuguesa, agora tô me perguntando, quantas Idálias eu mesmo já deixei e vou deixar passar desapercebidas?

Abraço

Mariana Teresa Galvão disse...

Bom, se todos fossem como a senhora que te ajudou, acredito que o mundo seria bem diferente. Se todos fossem como o calouro da USP que disse tal frase, o mundo também seria bem diferente. Ainda bem que nem todos se submetem às barbáries, muitas vezes impostas. Discordo dessa postura "Imagine a mesma cena no Brasil?". Por mais que falte muito para o Brasil funcionar da maneira que gostaríamos, muitos agem para uma melhora. Essa postura de idealizar a Europa me incomoda bastante, ainda mais quando vem de uma pessoa supostamente consciente das diferenças e dos problemas dos países.

Mas quem sou eu para escrever isso, né? Nunca sai desse país. Viajar me pareceu um pequeno poder agora. Ser brasileiro me pareceu uma linha para que a superioridade européia se apóie. Talvez o problema seja o prolongamento dessa linha. Apenas reforçamos sua cor, tirando fotos em frente a Universidades ou criticando (alegremente) a bosta que é viver nesse país.

"Nada como viajar. Onde mais poderia recolher essas cenas?" Em qualquer lugar desse mundo, Gian.

Unknown disse...

Concordo em partes com o post o comentário do ''Alfafa'' e também em partes com o da ''Mariana Teresa Galvao''.
A própria forma de como lemos esses posts já demonstram como a hierarquia é posta, nao sei se só em minha mente, mas na mente da maioria dos estudantes. O que quero dizer é que os seus anos de experiencia, Gian, são claramente maiores que o meu, assim como sua cultura, porém eu sendo uma das colouras de 2010 e brasileira não posso deixar de expressar a minha opiniao.
Bom, como caloura - acho que o trote ala ''porcos facistas'' está cada vez menos presentes, pelo menos nas universidades de nome. Fui ao meu trote sim, mas nunca com a intenção de voltar naquele mesmo local um ano depois e fazer com os novatos o que fizeram comigo. Eu fui lá para uma socialização fora das salas de aula, para conhecer os veteranos(aliás, não há melhor lugar para se conhecer os seus veteranos!) e o trote em si?! Bom, foi bem a base de ''tinta e água'' mesmo.A bebida era opicional, nunca obrigada. Na verdade, em tudo o que pediam os calouros tinham a opção de fazer ou nao.
Agora como brasileira, me coloco na posição de defesa. Claro que sou uma das primeiras a ver as coisas erradas e a criticá-las, mas assim como vc encontrou ESSA JOVEM SENHORA no exterior, poderia sim ter encontrado alguém no Brasil. A situação seria diferente se vc nos falasse que várias pessoas quiseram te ajudar, aí poderiamos falar em caracteristica do povo francês.(e mesmo assim, sabemos que os franceses, assim como todos os povos, têm seu ponto fraco no quesito educação com estrangeiros)

Bom, como uma ex-aluna de suas aulas espetaculares, me permito, assim como vc disse, a provocar, a incomodar sua opiniao !

Beijão !
=)

Gian disse...

E eu aqui criando uma hierarquia sem(?) perceber ! Porque EU, que sou fodão, fui pra Europa 200 vezes e sempre deixo isso implícito... que merda !!! EU sou o professor bacana que tem as sacadas geniais... que merda !!! Obrigado alunos, por me fazerem engolir a soberba.


(Aliás, EU sou o cara humilde que reconhece quando é um merda...que merda !!!)

Sentir disse...

precisa de sensibilidade para enxergar o que não se vê.

Renata M. disse...

Gi,

que história de viagem com alunos é essa? Que alunos são esses?? O Anglo tá levando a galera pra Paris?

Beijo!

Bruninha disse...

Sen-sa-cio-nal esse post! Na verdade nao vejo seu post como uma soberba sua .Penso ser natural uma pessoa com historias de vidas para contar cause o encantamento e nao a estranhesa ou a repulsa!Na verdade a hierarquia está dentro da pessoa que se sente inferior ... historias de vidas sao contadas , apreciadas e refletidas ( nao quer dizer q eu seja inferior pq eu nao passei pelas mesmas coisas que vc passou, ... eu tambem posso ter experiencias pra contar apesar da pouca idade !sem ter nada relacionado com hierarquia) Nao sei se consegui expressar o que eu quiz dizer!! Acredito sim que muitas pessoas utilizam de um pequeno poder para humilhar outras mas nao acredito ser uma regra!!
Quanto ao trote... eu concordo com o gian... eh uma barbaridade o que acontece por essas universidades a fora!!!A fase de entrar na universidade é algo deslumbrante, pelo menos para a maioria dos vestibulandos e para conhecer os veteranos nao seria necessario a humilhacao... a simples ida a um barzinho seria o suficiente!!! Na verdade não entendo o que passa na cabeça das pessoas que fazem o trote... o calouro acabou de chegar... acuado... e vc vai intimidá-lo para que ele se sinta mais acuado??? Não faz sentido !!! Ao ver pessoas sofrendo psicologicamente (talvez o trote psicologico seja o mais triste de todos) com trote resolvi que nao participaria disso tudo... uma opcão, que nao me deixou excluida , que nao me impediu de me divertir , que nao me impediu de conhecer inumeras pessoas interessantes!!!Uma opção que tentarei levar para outros anos!! E SIM o trote pesado ocorrem nas faculdades direta ou indiretamente ," em universidades de nome" ou não ( seja lá o que esse pressuposto que alguem disse ai queira dizer!), basta resolver se deseja compactuar com tudo isso ou não!!

Unknown disse...

hahaha, tim tim minha amiga Bruninha !

;-)

Giovanni disse...

Algumas perguntas:

Como esperar que jovens, adolescentes, inseguros e carentes de aceitação por natureza, vão contra algum tipo de trote?

E; que pensamento mais confortador na hora da humilhação do que a esperança de um dia estar na posição superior, abusando de outros?

Creio que apenas medidas vindas de fora são capazes de acabar com o trote, pela eficiÊncia de seus mecanismos de auto-perpetuação.

p.s. à Renata M.: Pelo que sei, todos os anos o Anglo realiza uma viagem para a Europa durante os dias entre os últimos vestibulares e a divulgação dos resultados.

Gian disse...

Respondendo,

Re: sim, desde 2009 há uma viagem o Anglo para a Europa em janeiro. Na verdade, há uma viagem do GIAN e do Maurício (de Literatura). No cardápio, Paris, Lisboa e Barcelona.

Giovanni: acho que esse argumento só vale para calouro. Tenta ir contra quando for veterano.

Roberta disse...

Medo das pessoas que praticam os trotes violentos e dos que se sujeitam a isso! O meu trote foi carinhoso e especial, me arrepio até hoje só de lembrar: os desenhos personalizados de todos da sala, a revista especialmente feita para os calouros do curso, o veterano atencioso de cabelo laranja, o pedágio divertido, o cinema independente (quem fez ECA sabe do que estou falando... hahaha!), brincadeiras saudáveis, palestras, festas etc. Esse momento foi a primeira grande alegria depois de um ano difícil. Ano de muito estudo, justamente quando perdi meu pai. Obrigada, veteranos queridos! :´)