sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

"Como se não restasse nada no mundo..."


Quando eu era mais jovem, todo tipo de gente falava comigo – disse ela. – Contavam todo tipo de coisas. Histórias fascinantes, histórias belas, estranhas. Mas, passado certo ponto, ninguém mais conversa comigo. Nem meu marido, nem meu filho, nem meus amigos... ninguém. Como se não restasse nada no mundo do que se conversar. Às vezes, sinto como se meu corpo estivesse se tornando invisível, como se você pudesse enxergar através de mim.

Em um recente (e alegre) colóquio, percebemos como todos gostam de ouvir histórias. De fato, quando crianças, o nosso próprio desconhecimento do mundo faz de cada relato uma descoberta. A escola tem isso, as primeiras aulas de Ciências que temos no Ensino Fundamental são absolutamente cativantes (até que, em um certo momento, elas se transformam em entediantes exercícios de aplicação de fórmulas instrumentais). Seja como for, lembro até hoje do austero professor Walter, da 5ª série, com seu forte sotaque alemão, nos encantando com sua narrativa sobre a experiência dos hemisférrios de Magdeburg.

Ao longo do tempo, conforme nossos gostos vão se sofisticando, passamos a ter prazer em histórias cada vez mais intrincadas, “difícieis” até, mas que causam o mesmo espanto dos relatos infantis. Desaparecem os grunhidos de entendimento (“ahhhnnn!”) e surgem as sobrancelhas levemente erguidas; saem as risadas escrachadas e aparecem os discretos sorrisos irônicos. E que nos dão o mesmo prazer, agora em versão adulta.

Há algo dramático na constatação de que, a partir de um certo momento na vida, simplesmente deixamos de ouvir histórias. A expressão “desencantamento do mundo” já foi utilizada para descrever esse processo. Claro, o que nos força a isso é evidente: o envolvimento cada vez maior com as coisas práticas do cotidiano; o fato de que, quando encontramos nosso lugar no mundo adulto, quase sempre cessam as descobertas, e vivemos nada menos que o empobrecimento da experiência. Encontramos alívio nos filmes, nos livros, mas o fato incontornável continua sendo: não nos sentamos mais em grupo, em torno de uma fogueira imaginária, para ouvirmos relatos fantásticos. Não vemos mais no Outro um depositário de experiências que possam enriquecer nossa vida.

Nas mesas de bar e restaurantes (cada vez mais próximas umas das outras, parece que agora é moda), somos obrigados a ouvir conversas absolutamente entediantes, seja sobre a vida profissional ou amorosa, seja sobre as férias ou compras, sempre compras. E percebam como essas conversas são intercambiáveis: a frase que começa em uma mesa pode ser concluída com um fiapo de conversa que ouvimos na outra. Mais curioso ainda: quanto mais fino (ou pretencioso) é o estabelecimento, mais pobre o conteúdo das conversas, embora relatem episódios ocorridos em cenários mais chiques: não tenho dúvida de que as conversas entreouvidas no Kintaro são infinitamente mais interessantes dos que as do Erick Jacquin.

A solução é... Dessa vez não tem solução. Apenas constato. E lembro o fragmento que abre o post, de Murakami, meu atual autor pop preferido. Trata-se de mais uma daquelas pequenas sacadas que povoam seus livros e que vamos descobrindo de repente, no meio da narrativa. E que trazem de volta algum encantamento, nos fazendo erguer as sobrancelhas e sorrir discretamente.

6 comentários:

Anônimo disse...

Gian, tudo bem ??
Descobri o seu blog faz pouco tempo e agora leio sempre que posso. Fui sua aluna no Anglo há dois anos e também era fã das suas aulas, rs!
E sobre essa última postagem,de fato não estamos mais tão dispostos a ouvir histórias...quando éramos crianças isso era fundamental e resolvia muitas das perguntas de por quê, onde e como ... embora muitas das respostas não fossem verdades absolutas ( se é que existe uma verdade dessas ) sempre foi um conforto tê-las e contar para os amigos... O empobrecimento da experiência me fez lembrar também o filósofo Walter Benjamin e o seu posicionamento pessimista, embora real, a respeito das relações humanas diante das histórias e da troca de experiências...
O que acontece hoje pode ser uma constatação, mas não podemos deixar de refletir sobre ela...

Bruninha disse...

Ouvir histórias sempre foi um encantamento pra mim ... saber a historia de vida de uma pessoa, por exemplo, fala muito sobre aquela pessoa ... sobre o momento vivido ... sobre a sociedade!!! Me lembro de um episódio de que estava andando pela paulista e entrei em uma galeria para ver artesanatos ... no meio de toda aquela loucura que é uma feira de artesanatos ... observei uma senhora sentada numa mesa com inumeros exemplares de um livro... logo a reconheci de uma reportagem sobre sao paulo e percebi que era uma senhora que havia nascido dentro do teatro municipal e a familia dela havia ajudado a construir todo o teatro!!! É logico que me sentei ao lado dela e comecei a conversar .... nessa conversa, que eu não vi o tempo passar, aprendi muita coisa ... sobre o próprio teatro , sobre as esperiências dela !!! É .. acho que extendi e acabei ,eu , escrevendo uma pequena história.... Aprendi que histórias de vida ensinam e constroem um individuo .. por isso acho que meu momento criança ainda nao passou e adoro ouvir!!!
Acho que é isso ... hahahha saudades das suas histórias gian!!!

Sentir disse...

Estar invisível é como não saber se está vivo ou não. Já leu o conto de Edgar Allan Poe sobre isso? Manuscrito encontrado em uma garrafa, chama.

Jóhyiss disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Raphael Felice disse...

Mais um dos milhões de pontos positivos das viagens. Em lugares de transição, onde se reunem vários viajantes ansiosos pelas descobertas que virão, naturalmente se formam rodas para troca de experiências.. E cada experiência contada é uma aventura, um relato de sofrimento, uma explosão de alegria. Cada experiência é uma história fantástica. Ai descbrimos que aquelas histórias da infância ainda existem, e descobrimos que viajar é uma fonte abundante delas.

Roberta disse...

Nada a ver: TODA vez que leio o título desse post, lembro de outra coisa e sorrio discretamente. "Le ciel dans une chambre"...