domingo, 14 de março de 2010

Dois personagens ilustres


Mindlin

Nunca dei muita bola para José Mindlin. Dele só sabia aquilo que se lê nas manchetes: empresário, rico, colecionador de livros. Apesar de não ter muito interesse ou curiosidade sobre sua pessoa, pensava que era bastante saudável um empresário gastar seu rico dinheirinho com livros e não com um mega apartamento em Miami e uma Ferrari na garagem. Porém, sempre me intrigou o uso do termo “colecionador de livros”. Seriam os livros objeto de coleção ? A manutenção de uma “coleção de livros” não seria a antítese de uma biblioteca ? Para pensar sobre o assunto, melhor começar com a identificação precisa do que é um objeto colecionável.

Pessoas colecionam selos, moedas antigas, imãs de geladeira, celulares ultrapassados, miniaturas de avião, latinhas de cerveja. Conheço pessoas que colecionam pedras e carros antigos. Leio sobre coleções de bonecas Barbie, curiosamente sempre mantidas por homens. Pensando em exemplos de objetos colecionáveis, pode-se começar a perceber suas características: são objetos materiais que não tem mais uso prático. Selos e moedas tornam-se objeto de coleção quando antigos, sem valor. Bonecas são colecionadas por homens adultos. Eu mesmo, quando criança, colecionava mapas de cidades do mundo: adulto, passei a visitá-las e a coleção deixou de existir.

Desprovidos de uso prático, os objetos colecionáveis ganham valor com o tempo: a raridade é um atributo sempre desejado nesse tipo de objeto. Finalmente, objetos colecionáveis permitem a formação de uma série, estando abertos à classificação. Gosto de pensar que todo colecionador tem algo em comum: um certo tipo de mente, uma propensão a arquivista. Mais ainda, os colecionadores parecem ter um desejo de ordenamento do mundo, o que reflete, certamente, uma sensação de estranhamento diante do mundo. Desajustado no mundo, o colecionador busca ordená-lo, passando a ser "dono" de uma coleção, senhor supremo de uma fatia desse mesmo mundo.

Não há dúvida que os livros passam longe de toda essa caracterização de objeto colecionável, pois o que dá valor ao livro não é necessariamente sua materialidade. Me parece que um “leitor de livros” tem uma relação muito mais estimulante com livros do que um mero “colecionador de livros”. Reconheço que a materialidade do objeto livro é um dado em si, e a própria preservação de livros antigos é um trabalho de inestimável valor. Mas, ainda assim, a idéia de uma coleção de livros soa mal.

Pois a coleção de livros é a antítese de uma biblioteca. Uma biblioteca é algo vivo, dinâmico, a que se tem acesso através da leitura. Muitas vezes algumas pessoas visitam meu apartamento e, após passarem pela biblioteca (que estranhamente é caminho obrigatório para o banheiro), perguntam, “Puxa, Gian, quantos livros ! Vc já leu todos ?”. Costumo responder coisas como: “Não, os dicionários, por exemplo, só li pela metade” (Umberto Eco diverte-se criando respostas novas para essa pergunta) . O fato é que bibliotecas não são depósitos de livros, lidos ou não lidos, colecionados ou não, classificados ou meramente empilhados.

Mas os objetos colecionáveis podem trazem outra característica. Muitas vezes, eles lidam com a memória. Assim, uma coleção acaba criando um espaço que transporta seu dono para algum lugar no passado. O ato de colecionar é mexer com esse passado, trazê-lo de volta e, quem sabe, reordená-lo. O colecionador se sente à vontade diante de sua coleção, e talvez aqui possamos entender o colecionador de livros, que simplesmente sente-se bem cercado de prateleiras cheias. Mindlin, que eu saiba, jamais escreveu algo como uma tese: o conteúdo dos seus livros nunca originou um pensamento original que merecesse ser divulgado. Porém, escreveu vários livros sobre sua coleção de livros, descrevendo as edições, explicando as condições que resultaram em uma determinada aquisição ou como foi obtida uma certa dedicatória.

Após sua morte, fiquei sabendo que a biblioteca de Mindlin era aberta, e parece que o próprio empresário facilitava a atuação de pesquisadores interessados em consultá-la. Assim, ele acabou convertendo sua coleção de livros em algo muito maior, uma verdadeira biblioteca.

Glauco

Para minha geração, Glauco não era apenas “aquele cara que desenhava na Folha”, mas um dos responsáveis pelo furacão que foi a produção de quadrinhos paulistana nos anos 1980. Não só ele, mas também Laerte e Angeli, o grupo conhecido como “Los Três Amigos”, título de uma série hilariante desenhada a seis mãos. Em uma época meio conservadora (como a atual) Glauco pôs em cena nada menos que um solteirão encalhado que queria transar com a mãe, o Geraldão, além de outros personagens impagáveis.

Não sabia de sua relação com a religião. Não sabia que sua religião era baseada no santo Daime. Não sabia que pessoas auto-intituladas Jesus Cristo batiam à sua porta. Só sei que tudo isso é uma pena.

7 comentários:

Gian disse...

PS.: No mundo da moda a palavra coleção refere-se a um conjunto de roupas ou sapatos que se apresentam em um ano, sendo substituído no ano seguinte. Aqui, o sentido da palavra coleção está intimamente ligado ao de “obsolescência”: algo que é usado hoje será jogado no lixo em seguida. Mais uma vez, estamos longe, aparentemente, do uso que desejamos dar a uma coleção de livros.

Will disse...

Eu tb soh conhecia Mindlin pelo oq via na mídia. Acho q a diferença da coleçao dele e das outras eh q as dele vc poderia tocar. Geralmente coleçoes d Barbies, carros, selos sao apenas para serem olhados, nao tocados. Ele deu parte d sua coleçao pra USP, um colecionador comum jamais doaria sua coleçao, sem contar q colecionar livros eh um hobbie pra vida toda. Quanto ao Glauco, nao dava a importancia pra ele ate q vi muitas pessoas falando d suas inumeras proezas.
Sua coleçao d mapas deixou d existir pq vc parou d colecionar ou pq jogou tudo fora?

Pierri disse...

Glauco, da família do sertanista Orlando Villas Boas... Tenho aula de antropologia com o filho dele...
Que doidera Gian, estou na faculdade com essas celebridades e ainda assim, sinto falta do cursinho e de suas aulas...
Sinto saudade de deixar minha mente ser invadida por conhecimento; conhecimento quase que sem nenhum tipo de posicionamento, quase que de maneira impessoal. Isso muito me tranqüilizou pois pude permitir que muitas portas dentro de mim ficassem abertas ou apenas encostadas...
Na faculdade não. Atenção redobrada à lavagem cerebral. Cuidado elevado para não cair no senso comum da grande massa. Respire fundo às provocações e vacine-se contra arrogância contagiosa.
Desabafei. Para chegar opinarmos de maneira sensata, temos que comparar todos os pontos de vista obtidos, e achar um denominador comum que se entenda com sua personalidade. E, no momento acredito estar comparando extremos.
Parabéns por essa vocação e por esse título muito mais que merecido, Professor!
Grande Abraço!!!

Gian disse...

Esse comentário merece ser relido com atenção:

No cursinho, deixava "minha mente ser invadida pelo conhecimento". Na faculdade "Atenção redobrada à lavagem cerebral... Cuidado para não cair no senso comum da grande massa".

Há algo de fundamentalmente errado no ensino brasileiro !!!

Plataforma Contra Antenas Móvil Miralbueno disse...

Gian, e os seus livros ou os livros que todos temos em casa ? Se não emprestamos, é por acaso uma coleção de livros como a do empresário ? Pra que serve os livros já lidos e que talvez nunca mais vamos a ler ou folhar, que no melhor dos casos termina em um sebo qualquer a preço de peso ?
Quanta pergunta...

Groucho Marx: Mais tonto que aquele que empresta livros é aquele que os devolve.

Gian disse...

Ué, Furu, por quê vc compra livros ? Se for pra "colecionar", então é isso aí: não serve pra nada. Biblioteca é instrumento de trabalho, livro bom a gente tem que ter a mão pra revisitar sempre que quiser. Livro ruim, basta jogar pela janela.

Jéssica Beatriz disse...

Olá Gian.mmm" (rs)

eu conheço quem coleciona cartões de visita... Acho útil.
apesar de ter em mãos sempre o celular para anotar os números que considero úteis...