domingo, 9 de maio de 2010

Da amizade



Sempre achei estranho que, quando criança, sempre tinha um “melhor amigo”, e depois de uma certa idade isso desapareceu. Deixei de ter amigos ou perdeu-se o sentido de destacar um deles como “o melhor”? Penso nos critérios que usava para eleger um melhor amigo: sobretudo, era necessário que a primazia da amizade fosse mútua, mas, além disso, o quê mais ? Talvez uma certa afinidade nas brincadeiras. Com M., meu melhor amigo dos 8 aos 10 anos, líamos Asterix furiosamente; sabíamos os diálogos de cor e nos divertíamos fazendo citações que os outros não entendiam (se estivesse no Twitter, acrescentaria o tópico #infâncianerd). Com L. melhor amigo dos 11 aos 13, o que nos unia era a paixão por carrinhos de ferro em miniatura (muito embora, para ele o valor das miniaturas estava nos carros propriamente ditos – tornou-se engenheiro –; enquanto para mim, a graça era a possibilidade de recriar o mundo em uma dimensão controlável – tornei-me historiador). Seja como for, já com 14 anos não tinha mais necessidade ou interesse em eleger o “melhor amigo”. Talvez porque com essa idade as prioridades sociais passassem a ser outras.

Há um texto em que Borges fala dessas estranhas “amizades inglesas, que começam por excluir as confidências e que logo também omitem o diálogo”. Esse trecho me faz pensar no estatuto que as amizades masculinas ganham com o tempo. Pois a partir de uma certa idade, surge a experiência compartilhada do trabalho, criadora de laços que dificilmente podem ser chamados por outro nome que não amizade. Com os colegas de trabalho, não buscamos interesses comuns (ou estes aparecem apenas como secundários), apenas realizamos o trabalho que deve ser feito. Não há espaço para expor a interioridade, embora esta transpareça como parte de nosso ser (e um colega de trabalho atento irá percebê-la). No trabalho, simplesmente acumulamos a experiência do viver junto, e com o tempo vai nascendo essa solidariedade das trincheiras, o sentimento de que estamos todos no mesmo barco, por mais estranheza que cause o colega ao lado. Não importam se seus interesses são distintos do meu ou não, não importa se sua interioridade é mais fraturada que a minha: o que importa é que amanhã estaremos lá, juntos, como estivemos ontem. No trabalho, eu não irei eleger a figura transcendente do “melhor amigo”, mas jamais irei deixar o colega na mão. Com o tempo, as amizades do trabalho começam a lembrar as amizades infantis, pois sabemos quais colegas compartilham dos nossos gostos ou manias.

[Interlúdio pop. Friends parece louvar a amizade, mas é meio irreal: seus personagens são essencialmente infantis, aliás toda a graça da série vem de observar como crianças grandes lidam com as coisas da vida adulta. Por outro lado, Seinfeld é mais real, ao mostrar uma rede de amizades masculinas (e Elaine é tremendamente masculina na sua relação com os rapazes). Toda a graça de Seinfeld vem da forma sarcástica como eles se agridem ou tiram vantagem da fraqueza do outro no dia a dia; porém, na hora da necessidade, o amigo sempre estará presente. Os personagens de Friends usam o termo “melhor amigo”, os de Seinfeld, não.]

Mas estranho mesmo é a amizade entre homem e mulher, talvez a única forma possível de amizade adulta que não necessita nem da sociabilidade gerada pelo trabalho, nem do simples compartilhamento infantil de gostos e manias. Em uma amizade entre homem e mulher, cria-se uma cumplicidade e um grau de envolvimento encantadores, porém, sempre à beira do abismo: o risco da amizade transformar-se em algo além. Quando isso ocorre, valores que fundam a amizade são colocados em cheque: o desprendimento é substituído por um sentimento difuso de posse; a dedicação unilateral é substituída pelo desejo de ter algo em troca.

Quando o sentimento que leva a ultrapassar a amizade é mútuo, ela se transforma em outra coisa: uma relação, que deixa de ser objeto de minha reflexão. Mas quando esse sentimento é unilateral, então o melhor é tomar fôlego e construir uma travessia por cima do abismo: uma ponte, formada de silêncio e que, depois de uma árdua superação e contando com o efeito analgésico do tempo, acaba por levar a amizade para o plano mais elevado que possamos encontrar.

Nessas horas – e, sobretudo, durante a travessia – o importante é não olhar para o abismo.

24 comentários:

Mariana Teresa Galvão disse...

Hum... Gostei da expressão "solidariedade das trincheiras".

Amizade é o assunto que mais me entristece.

Gostei.

Unknown disse...

Não olhar para o abismo é difícil.

Gian, você já viu How I Met Your Mother?

Stephanie Teramae disse...

Acho que denominar alguém como "melhor amigo" deixa de ter sentido quando se percebe que ninguém é bom o suficiente pra preencher todas as nossas necessidades.
Quando somos crianças, nossas necessidades são poucas (ter um amigo que goste das mesmas brincadeiras, e só) e fica fácil encontrar alguém à altura do "cargo".
Quando crescemos isso muda. A gente passa a ter amigos diferentes para atividades diferentes (sair, estudar/trabalhar, desabafar...). E o amigo que você se diverte às pampas, pode não ser aquele que você mais confia. Mas ele preenche uma de suas necessidades, então é um de seus amigos.

Não sei, mas um tipo de amizade que eu gosto bastante de ter é a que tenho com meus irmãos. Hoje eles estão aqui em casa, e é muito bom ficarmos nós três deitados na cama dando risada (muita por sinal), conversando sobre as coisas daqui de SP e de Caraguá. E quanto mais a gente cresce eu percebo que a ligação entre nós se transforma (por enquanto pra melhor). E é gostosa a sensação de saber que aos poucos eles confiam mais em mim e me veem como uma amiga, além de irmã mais velha.
Isso por enquanto né... Espero não perder essa proximidade quando virarmos os três adultos.

(Altos desabafos no seu blog, pra variar.)

Um beijo e até amanhã!

Unknown disse...

Interessante o que você fala sobre a amizade entre homem e mulher, mas creio que seja muito dificil manter sempre essa "dedicação unilateral". Afinal nós podemos ficar carentes, solitários, desolados de uma hora para outra e "confundir" (como muitos dizem) a relação de amizade que temos por outra pessoa. Ainda mais nesse turbilhão que são nossas vidas essas "confusões" são mais frequentes. Será que é tão diferente a relação que eu tenho com uma namorada comparada a uma amiga de longa data?

Emy disse...

Uma palavra: "BEST!"

Pensando no assunto é bem injusto eleger UM best, provavelmente causará inveja, ciúmes e orgulhos feridos, não é mesmo?

Considero vencedores os que tem a coragem de passar da primeira impressão e ainda permanecerem presentes na nossa vida. uHAUuhauHAUH insanos, coitados.

Sentir disse...

o mundo é um moinho. VAi triturar teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir tuas ilusões a pó.

toon disse...

sensacional !

Honey and Milk disse...

Pra variar, adorei o texto!
Já pensei nisso pra falar a verdade...
Tenho uma amiga desde bebê e ela sempre foi minha companheira de todas as aventuras escolares até a 7ª serie, quando conheci o resto da minha atual tchurminha.
Foi quando percebi que perdeu o sentido chamar aquela minha velha amiga de "melhor amiga" sendo que, naquele momento, tinha encontrado outras amigas que se tornaram tao importantes quanto a antiga...
E aqui concordo com a stephanie...perdeu o sentido chamar alguma delas de melhor amiga porque cada uma é "melhor" em algum aspecto da minha vida (uma pra sair, a outra pra estudar e por ai vai)
Quanto a amizade entre homens e mulheres eu apoio totalmente ( apesar de a minha mãe me dizer que esse tipo de amizade não existe porque sempre vai existir algum tipo de segunda intenção por uma ou ambas as partes)
... Acredito ainda que os melhores namoros, casamentos e etc são entre amigos que se apaixonaram!


Ai falei demais!

beeeijoo gian !!


Ps: friends pode ser irreal, mas é engraçado por demais!!hahahha

Lucas Bispo disse...

Achei o texto muito bom, mas o que vivo com as minhas amizades são diferentes. Eu consigo ter meus melhores amigos, se resumem a três pessoas. Um grande amigo de infância, que apesar de termos mudado de escola um ano depois de nos conhecermos ainda nos falamos sempre (aliás ele está no anglo esse ano). Uma grande amiga, daquelas que servem para estudar, ir ao cinema, conversar e que nunca se transformou em uma amizade colorida. E, por fim, minha namorada, que foi uma grande amiga, e ainda é. Passei, praticamente, pelos três estágios que cita no texto, e mantive os três, uahauahaa.
Ainda assim, apesar de ter esses "Três melhores amigos" eu posso dizer, sem medo de ser o maior clichê do mundo, que meus melhores amigos, de fato, são meu pai e minha mãe.
Muito legal o texto, como sempre.

Mari Cruz... disse...

Nossa...seus textos me emocionam, e isso é fato!
amizade é provavelmente o assunto que mais me toca!!!
algo tão especial...

bianca. disse...

(re)lendo benjamin (por aqui também).

a maia e eu fizemos um pente-fino nas referências pra uma relatoria com muitas imagens, passagens, arquitetura, choque e, quem sabe?, talvez até música (mas sem espetáculo).

até!

Bá :) disse...

Oi Gian :)
Outro texto para eu favoritas no meu bloglovin'!
Então,etava conversando com mamis no sábado sobre as minhas amizades.Sempre tive um certo problema com elas,porque eu tenho uma "mania" (acho que na verdade é inerente ao meu ser) de me ligar MUITO a uma pessoa e,atigamente era a uma unica pessoa,então me decepcionava muuuito fácil.Ainda me decepciono,mas estou mais "vacinada"
O assunto amizade para mim é muito intrigante.No momento tenho várias "bests" como o stephanie disse,cada uma se encaixa em um momento do dia/da vida...
Beijocas (:

Gian disse...

O assunto “amizade” provocou uma avalanche de acessos ao blog, só comparável aos posts sobre Amor e Tristeza no ano passado. Claro, nenhuma surpresa. Porém, relendo o texto e os comentários, percebo que talvez eu tenha sido pouco feliz em reduzir a complexidade da amizade a dois ou três modelos. Um dia reescrevo.

Ayumi: Já ouvi falar de How I Met Your Mother mas nunca assisti. É bom ? Tem a ver com o post ?

Cínthia: Cartola segue na sua cabeça, já faz semanas. Por quê ?

H & M: Ah, mas eu também gosto de Friends. E acho que irreal não foi uma boa palavra: há identificação com Friends porque muitas vezes somos crianças grandes como eles.

Lucas: Legal o seu jeito de colocar o pai e a mãe na jogada !

Eileen Winther disse...

Só você pra me fazer colocar os oculos as 11 horas da noite.

Imaginei você de bermudinhas lendo quadrinhos do Asterix :) AHAHHAHA.

Você é meu best teacher, serve?

Mulheres sempre têm melhores amigas, mesmo depois de adultas, bom, eu tô com 18 (não que eu seja adulta) e mantenho minhas melhores amigas. O interesse em comum somos nos mesmas, nossas vidas, nossa adolescencia. E eu gostaria muito de tê-las como amigas ateeeeé ficar veliiilha, até a sua idadeeee. AHAHAHA. just kidding :)

Beeeijos pessegão
;*

Carolina Rico disse...

Sempre achei amizade um assunto meio complicado também. Às vezes me pego pensando que queria ter alguma amizade que nem nos filmes que duram desde os primeiros passos da personagem até o final de sua vida. Mas nunca consigo concluir a ideia e achar bom ou ruim que comigo foi diferente. Eu tenho amigos que conheço desde a primeira série e que falo até hoje, não com a mesma intensidade, mas que não deixaram de importar para mim. Mas também percebo que existe uma quantidade muito maior de amizades passageiras na minha vida, que vem e vão sem eu nem perceber. Antes eu me preocupava com isso, até perceber que enquanto houver essa preocupação em nomear amizades ou "melhores amigos" eu não saberei quem eles realmente são, e a partir do momento que deixamos de catalogar as pessoas e apenas vivemos nossas vidas ao lado de quem amamos começam a transparecer as pessoas que nos amam também e fica muito mais fácil essa seleção que parece ser tão necessitada das nossas companhias.

Seus textos são sempre os melhores mesmo! Sempre me fazem refletir um pouco mais. E ah, eu comecei a escrever um blog também, e eu gostaria muito que você desse uma olhada, se puder, pra saber se estou "fazendo a coisa certa"!! haha
http://eusoqueriaexcecoes.blogspot.com/

Beijoos Gian.

..DONA DAS BATATAS.. disse...

Gian, fui sua aluna nos anos de 2000, 2001 e 2002 no Anglo Tamandaré. Obviamente você não se lembra de mim - além de ter mudado muitooo fisicamente, nós nunca conversamos sequer! - mas me lembro com carinho de você e das suas aulas que sempre adorei. Por caminhos tortuosos do orkut encontrei seu twitter, seu blog, e cá estou. Hoje sou cirurgiã-dentista, formada há dois anos e meio pela USP... o tempo passa rápido demais e isso me assusta! Mas as pessoas marcantes na nossa vida são eternas. Você foi um dos meus melhores professores e agora tenho o privilégio de acompanhar seus textos pelo blog. Obrigada por compartilhar seus aprendizados, suas idéias e suas frases geniais - Te quiero, bandido! Eu desejo tudo de melhor pra você. Beijos da ex-aluna, Thaís Borguezan Nunes.

Gian disse...

Eileen: "best teacher" é ótimo, fiquei envaidecido. Mas, claro, também tem o Arthur.... aaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhh !!!

Carol: as imagens do seu blog são as melhores !

Thaís: só me diga, por que diabos "dona das batatas" ???

..DONA DAS BATATAS.. disse...

Hahahah, esse povo que se apresenta pela metade... Sorry, teacher! Bom, é que eu tenho um blog cujo nome é "Thatha e as Batatas: Teses e Antíteses", daí vem o "dona das batatas". Escrevo por paixão e necessidade. Link: http://thathaeasbatatas.blogspot.com
Beijo.

Lara disse...

...quando passamos a travessia, vem a relação eu-tu de bubber, e tudo fica interessantemente completo, sentimos que somos pessoa, com toda personalidade que nos é peculiar.Mesmo que a passagem não seja tranquila, a relação se torna uma tempestade de compreensão do outro, por que o amor é calmo e o desejo passível de ser racionalizado, assim como a razão deve ser desejosa, graças a aristóteles.
um beijo

Lara disse...

Até pra aristóteles ter amigos era requisito para atingir a eudaimonia...

Do pouco um TUDO . disse...

Acredito que quando eramos crianças não sabiamos o real valor e o significado da palavra amizade. Era bem mais facil classificar amigos, escolhendo como critério a afinalidade .
Minha mãe sempre fala que amigos são aqueles que te apoiarão quando você mais precisar, e é engraçado dizer isso , mas a medida que o tempo vai passando você vai dependendo cada vez mais das pessoas . Com nossas proprias experiencias, vamos criando uma idéia do quanto é díficil ter "melhores amigos" e vendo que as pessoas que geralmente estão do seu lado quando você precisa são seus pais ou seus irmãos.
Com o passar do tempo, ELES acabam se tornando nossos melhores amigos.
E eu acho que é talvez por se tornar uma idéia tão óbvia na nossa cabeça que a expressão acaba se tornando desnecessaria.


BEIJOS

PS : ADORO o seu blog, semprem me fazem parar pra pensar um pouco em tudo.

Unknown disse...

Lembrei de How I Met Your Mother porque há um personagem que teima em ser chamado de "melhor amigo" pelo protagonista. E esse protagonista, Ted, tem outros amigos, homem e mulher. Seus melhores amigos, acho. Pode-se dizer que a história começa quando ele conhece outra mulher, e hmm resolve pular no abismo. Ted, aliás, não tem uma amizade muito boa com seus pais, e quer muito ser amigo de sua irmã mais nova. Acho que tem a ver com o post. Mas sei lá, talvez alguém não ache. Só comentei porque foi uma das primeiras coisas que me veio à mente.

:)

Unknown disse...

Muito gostoso ler seu texto Gian
Eu me diverti bastante até uma parte, que fiquei intrigada.
O sentimento que vai além da amizada a que vc se refere é um namoro ou um casamento, que seja? Bom, pelo que eu entendi sim...
Mas Gian, não concordo com a "posse" ou o "desejo de ter algo em troca". Acho que são amizades que deram certo, e que pode-se falar entao em zelo e reciprocidade.

Unknown disse...

nossa Gian, esse texto foi de arrepiar!!