sábado, 15 de maio de 2010

Em busca da música perfeita



Se sobrou alguma coisa de Deus no Ocidente, ela se encontra no vasto repertório de imagens, plásticas ou mentais, que o Cristianismo criou nos últimos dois mil anos. E continua criando, queiramos ou não. Por exemplo, nas imagens de Inferno e Paraíso que se oferecem à imaginação para que sejam constantemente recriadas, e eu me divirto inventando infernos e paraísos possíveis. Minha preferida, de longe, é certa visão do Paraíso que tive um dia, quando ouvia West End Blues, na gravação de Louis Armstrong em 1928, talvez a música perfeita.

Pensei nisso pela primeira vez quando me perguntei sobre a trilha sonora do paraíso. Qual música é tocada no céu, sendo repetida por toda a eternidade sem que ninguém jamais enjoe ? Claro, não se trata aqui de pensar seriamente em paraíso e inferno, mas simplesmente descobrir uma música que, de tão boa, provoque nada menos que uma epifania. Pois então, ponha West End Blues para tocar (http://bit.ly/9C70GP) e compartilhe minha visão.

introdução, trompete

Imagine que você agora morreu. A paisagem diante dos seus olhos, aparentemente desolada, é formada apenas por nuvens. (Talvez você vista um grande lençol branco, como o de Beatriz na Divina Comédia). Trata-se das portas do céu e, por um instante, você imagina o que acontecerá, se haverá um julgamento, se sua entrada será permitida. Subitamente, soa um trompete, anunciando que algo irá acontecer.

todos tocam juntos

Por todos os lados, surge uma revoada de anjos mulatinhos, como os que foram pintados pelo mestre Ataíde na Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto. Eles tocam instrumentos, e flutuam à sua volta. Em pouco tempo, você percebe trombone, piano, clarinete, percussão. Alguns anjinhos talvez tragam uma lira nas mãos, mais para efeito visual do que sonoro (anjos devem carregar liras, mesmo que silenciosas).

um trombone se destaca

Um dos anjinhos toma a frente e sopra seu trombone. Ele é a cara do Raul de Souza. Você percebe que seu pé, descalço e mesmo sem querer, começa a acompanhar a música.

solo de clarinete com uma voz ao fundo

Mais um anjinho surge à sua frente, agora tocando um clarinete. Sua música vem junto com uma voz que surge sabe-se lá de onde. Uma voz meio rouca, que diz palavras incompreensíveis. Seria Deus ? Mesmo sem entendê-lo, você se deixa levar pela musicalidade e, pela primeira vez, percebe que o chão onde se encontra é de nuvens: você flutua.

solo de piano

Outro anjinho tem um piano. Ele toca sozinho agora (mas quantas mãos ele tem ?), e conforme toca, as nuvens vão se abrindo. Você percebe alguém se aproximando, um vulto, talvez ele traga um trompete nas mãos.

solo de trompete

É Deus. Ele se projeta das nuvens na sua direção, imenso, negro, tocando trompete. Como na imagem acima, como uma imagem em 3D no cinema. Ele segura a nota (si bemol ?) por um tempo infinito, talvez quatro compassos, e é justamente nesse momento que você começa a perceber o que é a eternidade. E Deus toca o instrumento usando todos os seus atributos: é divino.

final com piano

Quando volta o piano, acompanhando o trompete, você já não tem mais dúvidas. É o Paraíso. E você faz parte dele.

14 comentários:

Anônimo disse...

Adoreeei Pessegão...
"chegar ao paraiso" ao som de Armstrong é realmente divino, comecei super bem o meu sábado (de estudos)hahaha!
=D
"Adoro o seu blog prof!" falei isso no corredor do Anglo para vc esses dias... e continuo adorando!
Beijoos Júlia

Raphael Felice disse...

Uma vez escutei uma musica que trazia uma imagem de um tipo de paraiso. Smoke rings, do glen gray. Pensei que nao econtraria outra tao boa quanto, mas sabe que west end blues é parecida? Obrigado pela dica

Anônimo disse...

Realmente acompanhar a musica com a sua descrição, imaginando a cena é incrível! Professor, sugiro que o senhor faça desse post uma trilogia e faça a descrição da entrada no Purgatório e no Inferno. ahuahauhuahauh

Lucas Bispo disse...

Ótima a sugestão do D. Pedro.
Eu me recuso a continuar dizendo que os posts são bons...já cansei de dizer isso, uahauahaua. Todos eles são!
O mais engraçado é que hoje estava na Saraiva, vendo uns cds, e me deu vontade enorme de levar um do Armstrong. Estou fazendo a coleção da Folha de músicas nacionais, e, com o pouquissimo (o nada quase) que conheço de jazz e blues, sinto uma influência enorme nas músicas nacionais. Quase levei um cd dele hoje...acho que o post foi um sinal! uahauaha
Obs. Professor, fui ver Robin Hood. O filme não é lá grande coisa, mas muito do que você explicou de feudalismo está lá. Se não me engano, as relações de suserania e vassalagem são bem explícitas. A diversão, no fim das contas, foi um complemento da aula...uahauahauaha

Honey and Milk disse...

Ahh concordo com todos!
Seria otima uma trilogia a la Divina Comedia! E sem duvidas nao vou mais manifestar minhas opinioes sobre o blog ( ja deve estar chato ouvir tantaaas vezes que seu blog eh demais..hahaha)
Enfim, tb estou fazendo a coleção da folha mas nao consegui ouvir nem metade ainda.. tenho diversao até julho! EBA EBA!
Quem sabe eu nao acho uma musica que me leve ao paraiso por 3 minutos como "West End Blues"...

Bruninha disse...

SENSACIONAL.... acompanhar a música com a sua descrição é mágico, até me emocionei,foi como se eu realmente estivesse flutuando e andando pelo caminho que descreveu!! Parabéns pela sensibilidade!
Saudades infinitas das suas aulas ... por isso acabo sempre passando aqui no seu blog para me surpreender cada vez mais!
Concordo com a ideia da trilogia!!! Pense nisso Gian!

Unknown disse...

Que estranho... Eu sempre pensei que o Paraiso fosse um lugar absolutamente silencioso.
Quando você disse que o homem do Renascimemto, por dominar a matemática, se sentia mais próximo de Deus, eu não pude deixar de me lembrar de uma frase do Galileu que dizia "a matemática é o alfabeto com a qual Deus escreveu o universo", o que me faz pensar que talvez a música seja realmente algo divino...

Lucas Bispo disse...

Honey and Milk
Ouça Cordas de Aço, no cd do Cartola, cantada por Gal Costa, com um violão incrivel. Depois me diga o que acha. Ouça tranquila, prestando atenção na letra e tentando imaginar o que ele descreve. Essa música me leva ao Paraíso.

korant00 disse...

nossa gian, que analise genial, adorei.

Unknown disse...

otimo texto! daqueles que nos leva a um lugar melhor.

Giovanna disse...

É o paraíso.

Lara disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gian disse...

De música ruim, o inferno está cheio.

Pierri disse...

Nessa linha, podemos citar "Alvorada" de Cartola.

O tamborim anunciando a entrada do sol, como se acordasse a natureza para sua chegada.

Em seguida, o violão ritimiza, por excelência, as pessoas que somente após a natureza percebe a entrada.

Mantidas as proporções temporais da verdadeira alvorada, e triunfante entrada do astro rei se faz quando o resto dos instrumentos entram abruptamente, criando uma música tão natural.

Natural no sentido de Natureza, dessa percepção prévia de seus elementos conseguimos identificá-los mais intensamente dentro da música. Mas natural também, no sentido de naturalidade, quotidiano, como cada amanhecer.

Já me peguei diversas vezes pensando porque Cartola não rebuscou mais essa música, com poesia tão tocante cantada por uma voz que mais parece um pranto de um coração; porque não a transformou em "Autonomia" (tocada com a Orquestra de Stokov, [não sei como escreve]) ou "Nós Dois". A resposta é porque seria estranho exaltar uma música que nos vem à tona todos os dias; seria como ler Odisséia todas as manhãs, vestir-se de gala para tomar banho.

Ela foi feita para cumprir sua função, nada mais e, quem tiver devida sabedoria há de perceber sua beleza e admirá-la tão somente.

Talvez eu escreva mais sobre o assunto! Gostei!

Grande Abraço Gian!