domingo, 30 de maio de 2010

Whatever works



Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.

O trecho acima me veio logo à mente ao ouvir o monólogo que inicia o novo filme de Woody Allen, Whatever works, e expressa de alguma forma a visão de mundo de seu personagem principal Boris Yelnikoff (interpretado por Larry David, aliás, um dos criadores de Seinfeld). Essa visão nietzscheana esta presente, por exemplo, não só na sua desconfiança em relação ao “sentido” das coisas, mas à denúncia engajada de quem busca esse sentido. A visão mordaz da religião (facilitada pela estupidez explícita dos personagens religiosos do filme) e o elogio do acaso fazem parte do discurso nietzscheano de Yelnikoff.

Além de uma certa propensão ao isolamento (e a constatação de que possuem mentes brilhantes não reconhecidas pelos seus contemporâneos, meros inchworms), tanto o mal-humorado novaiorquino quanto o bigodudo alemão têm em comum a afirmação da pequenez do ser humano: somos nada, e nosso conhecimento e apenas uma frágil teia que construímos basicamente por que temos medo. Grãos de poeira jogados em um universo hostil, criamos fantasias que vão da moral à metafísica, da ciência à verdade, basicamente para nos sentirmos seguros. A metáfora da “teia” está no mesmo texto de onde foi tirado o fragmento que abre o post, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, de 1873.

Com essa visão, Yelnikoff surge como um personagem niilista, e contagioso, ainda por cima. A própria Melody incorpora seu olhar e reclama após voltar de seu primeiro “date” novaiorquino: pessoas vazias, riem de tudo, se empolgam com tudo. Ou mesmo quando ela cruza com um rapagão boa pinta, Perry Singleton, passeando com os cachorros: “Posso caminhar com você ?”; “Ah, tudo bem, tanto faz, afinal todos estamos condenados mesmo”.

Mas Melody é a primeira a deixar de lado esse niilismo passivo (sigo os parágrafos 22 e 23 do livro de Nietzsche A Vontade de Poder). Sim, Melody aprendeu o niilismo passivo e logo passou a exercer o caráter destrutivo da visão de mundo de Yelnikoff, sempre pronto a não deixar pedra sobre pedra do universo de valores conhecido. Mas isso não satisfez Melody, ela seguiu em frente na sua busca... na sua busca por o quê ? Provavelmente na busca que ela iniciou quando fugiu de sua cidadezinha perdida no fim de mundo do Deep South norte-americano. Seguindo adiante com sua busca Melody passou a manifestar sintomas do que Nietzsche chamou de niilismo ativo: não se trata de substituir um artigo de fé por outro, mas seguir em frente rumo à realização da própria vida. Melody não se acomoda, rompe com Yelnikoff, segue em frente subvertendo seus valores como, aliás, seus pais fizeram (de forma radical) após chegarem em Nova York. Melody e seus pais de alguma forma expressam a vontade de poder, enquanto princípio criador e lei originária por trás de todo movimento do universo. São pessoas que estão se re-criando, enquanto Yelnikoff afunda na negatividade (até chegar ao ponto em que só a morte é solução).

Mas Yelnikoff é mais arguto que pensamos, ele aponta para outro tema nietzscheano, inseparável do princípio da vontade de poder (cuja explicação apenas esbocei logo acima): trata-se do eterno retorno. Considerando, como princípio, a existência de uma força constante no universo atuando em tempo infinito, toda idéia de finalidade ou sentido passa a ser descartada (desde que descartemos também o princípio de um deus criador); da mesma forma, o tempo infinito faz com que todas as conjunções de força possíveis já tenham ocorridos e só devam se repetir (acredite, a “eternidade” é tempo pra cacete!). Se todos os momentos vividos devem se repetir infinitas vezes pela eternidade, melhor aproveitá-los, vivê-los em sua plenitude.




Ao invés da ética cristã de responder pelos seus atos (e ser punido pelas faltas) no futuro, surge uma nova ética fundada em viver corretamente, aproveitando os momentos ao máximo (“sAdicionar imagemem prejudicar os outros”, acrescentaria Yelnikoff), para que sua repetição seja sempre bem-vinda. Sem buscar algum sentido ou finalidade, sem dogmas ou planos. Sem receitas. Whatever works.

8 comentários:

Sentir disse...

agora vou ter que assistir ao filme...pouco confortável pensar na falta de sentido e, por mais que eu pense nisso,e seja bastante niilista, não sinto isso...por um hormonio qq que o meu corpo produz para camuflar a sensação intensa da passagem do tempo e o seguinte fim (sem finalidade). E assim vou me entretendo: num bar aqui, outro ali, uma boa comida, música, viagem...rs.Vc deveria escrever mais sobre filmes...

Unknown disse...

Estranho ler, de um professor de cursinho, que um sentido para os sofrimentos (como o vestibular) é uma ilusão e que fazer qualquer outra coisa não apenas é uma opção como pode "dar certo". Talvez isso explique a anormal popularidade do post (・・;)

Gian disse...

C: Mas essa sua vida em busca de bares, boa comida, boa música... é entretenimento ou busca de sentido ?

B: Mas não fui eu que disse isso, foi Boris Yelnikoff. E ele não disse que se uma coisa causa sofrimento deve-se procurar outra.

Seja como for, também me pergunto sobre a impopularidade do post. Próxima semana farei revelações picantes sobre pessoas conhecidas, quem sabe terei mais resposta.

Lucas Bispo disse...

Acho que por falar de forma muito específica de um personagem do filme. Quem não viu ainda não teve como analisar o personagem e o filme desta forma. Se eu tivesse assistido comentaria de forma mais segura. O texto está bom, mas, pra mim, ainda não faz completo sentido. Quando assistir ao filme, provavelmente, vou ler novamente.

Roberta disse...

Impopular, mas adoro quando você escreve sobre filmes! Por que será, hein? Você poderia comentar também "O Segredo dos Seus Olhos" e "A Fita Branca".

Mimadão!

(Sobre o assunto do post, acho que já falei demais em "outras ocasiões"... ¬¬)

Sentir disse...

Bem-estar. Simples assim.

Cold Heart disse...

Colocou em palavras tudo o que mais gostei e mais refleti sobre o filme.
Lembro-me que, na primeira vez em que assisti, identifiquei-me horrores. Na segunda, refleti um pouco mais. Nas outras, idem.
Depois desse filme, a 5ª sinfonia de Beethoven ganhou mais uma forma de ser ouvida.

É difícil um filme do Allen não ser muito gostoso. Dos que assisti (poucos, em relação ao todo), só O Sonho de Cassandra foi meio daquele jeitão.

É difícil também cruzar com alguém que assistiu ao filme. E, quando cruzei, todas as pessoas disseram que dormiram. Como puderam, ainda não sei. Mas perderam muita coisa.

Gian disse...

O que vc quer dizer com "daquele jeitão" ? Tenho gostado um bocado dos últimos filmes do Woody Allen, tirando, talvez, aquele de Roma. Mas os filmes de Londres são bacanas, e o "Matchpoint", foda !