sexta-feira, 4 de junho de 2010

Ouro Preto



O primeiro frio do ano aguça a memória. O inverno traz Ouro Preto, cidade para qual nunca se deve deixar de voltar. Em cada viagem algo novo sempre é descoberto e, a partir da regularidade da viagem (todo ano, em julho, de ônibus, levando um grupo) uma questão surge e fica no ar: se a cidade é sempre a mesma e os lugares visitados são os mesmos, o que muda ? Só pode ser o viajante, que vai se descobrindo como uma pessoa diferente a cada retorno; sabemos que é isso que dá valor a uma viagem. Ouro Preto sempre foi e sempre será uma cidade infinita.

Gostaria de poder falar sobre Ouro Preto da mesma forma que o Paulão, antigo professor de História do Brasil do Anglo. Se não com as mesmas palavras com que ele me apresentou a cidade pela primeira vez, pelo menos com a mesma paixão com a qual ele descrevia Ouro Preto em sala de aula, falando da Inconfidência Mineira, e que fez com que um aluno, em um momento qualquer da década de 1980 desabafasse: “Pô, Paulão, por que você não leva a gente pra Ouro Preto ?”. Assim nasceu a primeira viagem do Anglo para as cidades históricas de Minas Gerais.

Entrei na aventura bem mais tarde, como convidado, e jamais esquecerei cada detalhe da primeira vez que estive em Ouro Preto, em 1999. A paisagem surpreendente, o ar da montanha, a visão noturna do Colégio onde sempre nos hospedamos, a arquitetura da cidade explicada minuciosamente pelo Paulão. Nomes escritos com giz no chão do Colégio. Becos estreitos cobertos de névoa, ganhando ares de mistério. O frio da cidade contrastando com o calor das paixões.

Porém, o aspecto mais encantador da viagem sempre foi a possibilidade do convívio entre as pessoas sem as restrições habituais do cursinho, como os horários rígidos balizados pelo toque do sinal ou mesmo o número excessivo de pessoas. Em Minas, os encontros se multiplicam e – sob o impacto das descobertas do dia ou mesmo da cachaça de Minas – acabam por transformar cada conversa em um Alegre Colóquio. Paulão era mestre no colóquio de botequim, falando de história, de música, da MPB que ele tanto gostava, das lembranças de viagens anteriores com outras turmas, de sua vida dura de estudante durante o regime militar. Paulão falava sobre o que era ser negro no Brasil. E tudo isso no meio de noites intermináveis, sob o espetacular firmamento de Ouro Preto, pelo menos antes que a névoa começasse a cair na alta madrugada.

Herdei a viagem em 2003 (estranha herança sem testamento), e imprimi o meu caráter ao roteiro: menos história do Brasil, mais história da Arte; menos pinga com mel, mais Filosofia. Foi quando fiz as minhas próprias descobertas, imediatamente compartilhadas com os alunos, como a obra do mestre Athaíde e seus anjinhos ou a igreja do Rosário e sua surpreendente fachada curva. Todavia, a parte que mais me honra nessa herança é a possibilidade de ser o novo anfitrião de Alegres Colóquios cada vez mais vibrantes.

As turmas de 2007 e 2008 foram talvez as melhores em todos os tempos, e passaram a fazer parte dessa longa corrente que dura já mais de vinte anos. E é isso que me empolga em manter a tradição da viagem: compartilhar descobertas, ir além da nossa experiência de cursinho limitada por quatro paredes, sentir o impacto da memória das minas, ter renovado o mesmo espanto que tive da primeira vez, ao contemplar o barroco mineiro (que me ensinou um novo olhar). Me empolgo ao proporcionar a todos a possibilidade de fazer parte dessa corrente.

Leio comentários no blog de pessoas que estiveram na viagem cinco, seis anos atrás e hoje acompanham minhas divagações: agora não são mais alunos, mas continuam sendo companheiros de descobertas. Fico sensibilizado e não consigo deixar de imprimir a esse post um caráter emotivo, assumindo o lado confessional que sempre tento evitar desde que inaugurei o blog.

Faço a todos que me lêem um convite para participar de Alegres Colóquios nas cidades históricas de Minas Gerais. Quem não for mais do Anglo que se sinta convidado do mesmo jeito, sempre fico feliz em receber ex-alunos no grupo.

..........................

Na foto, a turma de 2007 descobre, perplexa, as imagens que se escondem nas sombras da escultura de Aleijadinho. As caras são ótimas: alguns enxergam, ficam encantados; outros ainda não e forçam a vista apertando os olhos. À direita, um menino esfrega as pálpebras, exausto. Nessa hora, minha explicação não basta: as pessoas tentam se ajudar umas às outras, tentam ensinar como olhar diferente.
........................
(postado originalmente em junho de 2009)

8 comentários:

Lucas Bispo disse...

Como eu queria ir...infelizmente, já tinhamos comprado passagem pra viajar para outro lugar justamente na mesma semana, vai ficar apenas na vontade. Mas, acho que em Janeiro estarei na Europa, rs.

Raphael Felice disse...

o primeiro parágrafo parece marco polo descrevendo uma de suas cidades invisíveis para o grande khan.. muito bom!

Sentir disse...

Precisa de monitor???rsrrs

Vinicius disse...

Após um ano e mais algum tempo. Um 2009 sem pisar no Anglo, exceto talvez por um dia em que, por acaso, cruzei a frente daquele lugar onde, em 2008, apostei todas as minhas fichas.
E foi OP um dos momentos em que mais pude sentir, a mim e a todos, não sai da minha cabeça aquelas noites frias, aquele quilombo, aquela senzala, aquele silêncio ("que às vezes era rompido por um grito, na época da mineração por, talvez, um escravo fugido e recapturado, e hoje, pelos estudantes") e principalmente aquelas pessoas.
Por isso mesmo sem manter contato, guardo uma profunda gratidão, e um profundo respeito, pelo que me aconteceu ali!
Adoraria ir novamente, mas devido à trabalho serei impedido novamente.
Abraços Gian. Saudades de suas aulas. (Não sabe como suas referencias me ajudam bastante até hoje lá nas artes cênicas! haha)

bianca. disse...

a pinga com limão pode ajudar na filosofia... já dizia o velho benjamin que nos embriagamos pouco! (não quero fazer dele um rabino, mas com esse tipo de conselho...)

Gian disse...

Caro Lucas: vc será muito bem vindo nos Alegres Colóquios europeus de janeiro, certamente !

Raphael: "Ouro Preto é uma cidade infinita" é a coisa mais Marco Polo que escrevi na vida. Foi meio sem querer, embora minha grande ambição na vida esteja em ser o Pierre Menard da obra de Ítalo Calvino.

C: Monitora ? Bem que eu queria, mas acho que só se Shiva permitir e Ganesh abençoar.

Vinicius: saudades da sua turma, meu caro. Vc sabe que a Humanas 2008 foi especialíssima, no Anglo tem uma dessas por década. Abraços !

Bianca: me pergunto como seriam nossos Alegres Colóquios quinzenais se estivessemos todos embriagados. Eu só aceitaria relatorias sob a forma de coreografia, no mínimo.

ricardo andreoli disse...

Gian, Ouro Preto 2007 foi uma das melhores viagens de todos os tempos. O vínculo criado com as pessoas que conheci permanece e sempre que encontro um dos integrantes dela tiro um dedo de prosa sobre Ouro Preto e também sobre a vida que tanto mudou depois dessa experiência. O conhecimento adquirido é totalmente diferente da letra fria dos livros. Dá-se vida ao conhecimento e o transforma em parte de sí. Impagável Viagem. Valeu!

Erica disse...

Gian! Acho q seu post é um otimo argumento para usar com a minha mae! hehe Mas queria deixar registrada minha gratidão pela viagem de 2008! Ouro preto é um ligar mágico para mim, é impressionante como senti esse mistério nas ruas, vi a névoa, senti a gruta dos escravos... E conviver com pessoas diferentes q normalmente estão preocupadas com a tarefa minima e complementar! Acho q ouro preto foi um momento de respirar em um ano tenso, lá conheci pessoas maravilhosas e vivi dias incríveis! Tenho até medo de voltar lá e descobrir q ouro preto não é tudo isso q penso, q lembro...Não sei como eram as viagens com o paulão, mas as suas viagens são muito boas! Nos divertimos, refletimos, sentimos...
bjos
saudades da turma de 2008