quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Fachadas antigas


Há um tipo de casa que cada vez menos se vê em São Paulo, mas que já foi a cara da cidade. Construídas em terrenos compridos – pouca frente e muito fundo – foram residências de famílias de classe média (numa época em que São Paulo era uma cidade de classe média), e seus últimos exemplares podem ser vistos em velhos bairros italianos como Liberdade, Bexiga e no começo da Zona Leste, a partir da Móoca. Essas casas eram feitas por habilidosos mestres pedreiros de origem européia, que aprenderam seu ofício trabalhando com gesso, torcendo ferro e entalhando pedra nos canteiros de obras europeus do final do século 19.

Encontrei essas casas pelo interior do estado, em Campinas, Sorocaba e Jundiaí, e me pergunto se elas existem em número expressivo por outros estados. Ao longo do século 20 essas casas foram se deteriorando: na minha infância, cheguei a ver muitas delas transformadas em pensões, verdadeiros cortiços onde se amontoavam trabalhadores pobres e migrantes recém chegados do nordeste. Mais tarde, essas casas foram sendo simplesmente derrubadas.

Suas fachadas se repetem: duas janelas gradeadas baixas que iluminam o porão, duas janelas mais acima que se abrem para a sala e um portão lateral, quase sempre de ferro trabalhado, e que infelizmente não aparece na foto acima. O aspecto retangular e simétrico das fachadas, em que pese o portão lateral, sugere uma inspiração neo-clássica. Porém, os excessos ornamentais de diversos estilos acabam “poluindo” a obra, notadamente no alto da fachada, onde o pedreiro dava o seu toque pessoal enchendo o frontão quadrado de volutas e meandros de inspiração art-nouveau, bem como de cornijas e ornamentos em geral. No centro do frontão, a data em que foi concluída a obra: 1900, 1910, 1915, acompanhando mais ou menos os últimos momentos do surto de urbanização trazido pela cafeicultura.

A planta dessas casas é sempre a mesma, com poucas variações. O portão lateral e a pequena escada logo à sua frente dão acesso a um comprido terraço que acompanha a extensão da casa em um de seus lados, com o chão coberto de ladrilhos de cimento hidráulico, no nível dos aposentos. Logo no começo do terraço, uma porta se abre para a sala, iluminada pelas duas janelas abertas para a rua. Da sala sai um comprido e escuro corredor que se abre para dois ou três quartos, cujas janelas se abrem para o também comprido terraço lateral. No fundo desse corredor, a área de serviço, com banheiro e cozinha lado a lado, mais a escada para o porão. Um pequeno quintal ao fundo completa o conjunto.

Nunca entrei em uma casa dessas, me limitando a observar as fachadas, estudar as plantas e imaginar o tipo de vida que se levou nesses aposentos. Na escola, tive que ler “Éramos seis”, e imaginava que Dona Lola e sua família vivessem em uma casa como essa. Mais tarde, em meus momentos “The Sims”, cansei de construir bairros inteiros de casas como essas.

Nos anos 1920, tais casas começaram a escassear. A industrialização construiu bairros operários de casas geminadas, bem mais modestas. Quanto à classe média, a década iria trazer um estranho surto de nacionalismo arquitetônico, que assumiu a forma de um neo-colonial bastante peculiar. A foto abaixo mostra um posto de gasolina da Shell (ou Anglo-mexican Oil Company), em estilo neo-colonial dos anos 20. A Shell construiu dezenas de postos idênticos e espalhou-os pelo país, há pelo menos dois deles bastante bem conservados no alcance de uma caminhada da minha casa.

Já nos anos 1930, esse neo-colonial caducou, e o “modernismo” chegou à arquitetura paulistana, importado sob a forma de Art-deco.

Um comentário:

Mariana Teresa Galvão disse...

Gostei do texto... Senti até o cheiro da casa com sua descrição.

Aqui na Mooca ainda permanecem algumas casas com essa arquitetura, mas com a onda dos prédios novos - com aquela aparência neoclássica horrível - muito da caracterização do bairro se perdeu, sobrando apenas as finas fachadas de antigas fábricas, ou fachadas deterioradas, como a da foto. Uma pena.

Beijo.