segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Candy Crush Conatus




O jogo é de uma grande simplicidade: agrupar docinhos do mesmo tipo em uma sequência de casas, provocando seu esmagamento e contando pontos. Algumas variações incluem casas cobertas de gelatina, mais difíceis de dissolver, chocolates que se multiplicam feito células cancerígenas (dando ao chocolate uma estranha negatividade) e assim por diante. Ao ganhar pontos e limpar casas, o jogador está apto a mudar de fase. Estou na fase 86, conheço gente que passou de 200 e não há fim à vista. O jogo parece ser eterno e, sem dúvida, é viciante.

 E multidões se dedicam a ele. Há amigos de quem não recebo notícia, mas sou regularmente informado, via Facebook, de seus triunfos no Candy Crush. Outros amigos, que tomo por intelectuais refinados, volta e meia pedem-me “vidas”. Parentes, colegas de trabalho, pais de família, todos jogam. Por quê ? Qual o poder de atração de um jogo tão simplório ?

 Incialmente pensei em simples higiene mental: após um árduo dia de trabalho e demandas intelectuais, após horas a fio se preocupando com respostas racionais a problemas concretos, o Candy Crush oferece um momento de desligamento. Aprende-se a mecânica de Candy Crush rapidamente, joga-se quase sem pensar, e pequenas recompensas surgem sob a forma de sucessivas mudanças de fase. Graus crescentes de dificuldade entre as fases ajudam a provocar, periodicamente, uma sensação de satisfação.

 Todavia, a maior parte dos trabalhos que fazemos no cotidiano talvez já seja mecânica e não demande muita reflexão. Normalmente, as recompensas que temos por esse trabalho enfadonho são tão fúteis quanto as de Candy Crush: bens de consumo, cuja satisfação prometida se esgota pouco após a compra. Sendo assim, permanece a pergunta: qual o poder  de atração da saga de Candy Crush ?

 Há em Spinoza o difícil conceito de conatus, descrito pelo filósofo como algo semelhante a um “apego à vida”. Mais do que simples instinto de sobrevivência, o conatus expressa o desejo de efetivamente viver a vida, realizar a vida. Trata-se, ao que me parece, de um impulso essencial do ser humano, o desejo de querer “ir para frente” de buscar um “desenvolvimento” pessoal. O uso da palavra “desenvolvimento” pode parecer exagerado, e remeter a um aspecto econômico que não é obrigatório na efetivação do conatus; ao mesmo tempo, a referência a “pessoal” não pode limitar o conceito ao puro individualismo: realiza-se o conatus na vida em sociedade ou, como diria Spinoza, na Natureza.

 Mais tarde, Nietzsche desenvolveu o conceito de vontade de potência, que vai na mesma linha. É conhecida a carta de Nietzsche a Franz Overbeck, em 1881, na qual o filósofo alemão de diz maravilhado com a descoberta de Spinoza e afirma a grande proximidade com seu pensamento. Em Nietzsche fica claro o sentido da vontade de potência como o poder ou impulso de afirmar a vida, algo imperativo diante da doença que afetava cada vez mais a civilização.

 Atualizando Nietzsche, há muito em nossas práticas do cotidiano que nega a vida. O trabalho enfadonho com relógios de ponto e atividades repetidas diz não à vida; a excessiva quantidade de normas que regulamentam cada passo do dia a dia diz não à vida; ônibus lotados e mal cheirosos (em faixa preferencial ou não) dizem não à vida; síndicos de prédios e diretores de escola, guardiães da norma, dizem não à vida; o chefe que grita com o funcionário e o machão que assobia para a moça de minissaia dizem não à vida; salários indignos dizem não à vida; fast food diz não à vida; o crime (e a PM) dizem não à vida; escrever esse texto para entregar “no máximo até quinta-feira à tarde” diz não à vida.

 De minha parte, e diante de tantas limitações no dia a dia, tento compensar jogando Candy Crush. E peço para todos aqueles que têm facebook: ajudem-me a ter sucesso enviando-me mais vidas.

4 comentários:

Sweet Sunshine. disse...

Como sempre, você foi incrível. Mas talvez a potência também esteja em lutar contra essa massa compulsiva. O ato repetitivo é alienante, não cria. Te ajuda a ficar submerso frente a tantas frustrações, mas não a combatê-las e transformá-las.
O devir a ser, com todas as suas potências, são lutas, embates que nos fortalecem e nos humanizam.

Carol Nomura disse...

Concordo com tudo. mas que o que seria do "sim à vida" sem o "não à ela"?

Amanda Dokas disse...

Giannnnn o que seria de minha vida sem suas reflexões !!! Ainda mais sobre o Candy Crush ( não estou sendo irônica juro) que ja faz parte da minha vida ( pessoas simples, diversões simples) Beijos meu querido!


Amanda Dokas Anglo

Unknown disse...

Nos seus últimos posts do blog, você menciona uma admiração por espíritos livres como os dos piratas, uma necessidade de fuga de todos os aparatos burocráticos, denuncia a supremacia de um mundo vazio, enuncia a "falta de vida" que te cerca...

Será que estou muito errada ao afirmar que os últimos tempos mostraram-se de pouca beleza e arte para você?
Ou a beleza e a arte, só se realizam em forma de lamento? MELANCOLIA =D ?Como você vê isso?Quais pensamentos tomam conta de você quanto à realidade?

Desculpa a crítica fio, é uma dúvida minha. =)