O jogo é de uma grande simplicidade: agrupar
docinhos do mesmo tipo em uma sequência de casas, provocando seu esmagamento e
contando pontos. Algumas variações incluem casas cobertas de gelatina, mais
difíceis de dissolver, chocolates que se multiplicam feito células cancerígenas
(dando ao chocolate uma estranha negatividade) e assim por diante. Ao ganhar
pontos e limpar casas, o jogador está apto a mudar de fase. Estou na fase 86,
conheço gente que passou de 200 e não há fim à vista. O jogo parece ser eterno
e, sem dúvida, é viciante.
E multidões se dedicam a ele. Há amigos
de quem não recebo notícia, mas sou regularmente informado, via Facebook, de
seus triunfos no Candy Crush. Outros amigos, que tomo por intelectuais
refinados, volta e meia pedem-me “vidas”. Parentes, colegas de trabalho, pais
de família, todos jogam. Por quê ? Qual o poder de atração de um jogo tão
simplório ?
Incialmente pensei em simples higiene
mental: após um árduo dia de trabalho e demandas intelectuais, após horas a fio
se preocupando com respostas racionais a problemas concretos, o Candy Crush
oferece um momento de desligamento. Aprende-se a mecânica de Candy Crush
rapidamente, joga-se quase sem pensar, e pequenas recompensas surgem sob a
forma de sucessivas mudanças de fase. Graus crescentes de dificuldade entre as
fases ajudam a provocar, periodicamente, uma sensação de satisfação.
Todavia, a maior parte dos trabalhos que
fazemos no cotidiano talvez já seja mecânica e não demande muita reflexão.
Normalmente, as recompensas que temos por esse trabalho enfadonho são tão
fúteis quanto as de Candy Crush: bens de consumo, cuja satisfação prometida se
esgota pouco após a compra. Sendo assim, permanece a pergunta: qual o poder de atração da saga de Candy Crush ?
Há em Spinoza o difícil conceito de
conatus, descrito pelo filósofo como algo semelhante a um “apego à vida”. Mais
do que simples instinto de sobrevivência, o conatus expressa o desejo de
efetivamente viver a vida, realizar a vida. Trata-se, ao que me parece, de um
impulso essencial do ser humano, o desejo de querer “ir para frente” de buscar
um “desenvolvimento” pessoal. O uso da palavra “desenvolvimento” pode parecer
exagerado, e remeter a um aspecto econômico que não é obrigatório na efetivação
do conatus; ao mesmo tempo, a referência a “pessoal” não pode limitar o
conceito ao puro individualismo: realiza-se o conatus na vida em sociedade ou,
como diria Spinoza, na Natureza.
Mais tarde, Nietzsche desenvolveu o
conceito de vontade de potência, que vai na mesma linha. É conhecida a carta de
Nietzsche a Franz Overbeck, em 1881, na qual o filósofo alemão de diz
maravilhado com a descoberta de Spinoza e afirma a grande proximidade com seu
pensamento. Em Nietzsche fica claro o sentido da vontade de potência como o
poder ou impulso de afirmar a vida, algo imperativo diante da doença que afetava
cada vez mais a civilização.
Atualizando Nietzsche, há muito em
nossas práticas do cotidiano que nega a vida. O trabalho enfadonho com relógios
de ponto e atividades repetidas diz não à vida; a excessiva quantidade de
normas que regulamentam cada passo do dia a dia diz não à vida; ônibus lotados
e mal cheirosos (em faixa preferencial ou não) dizem não à vida; síndicos de
prédios e diretores de escola, guardiães da norma, dizem não à vida; o chefe
que grita com o funcionário e o machão que assobia para a moça de minissaia dizem
não à vida; salários indignos dizem não à vida; fast food diz não à vida; o
crime (e a PM) dizem não à vida; escrever esse texto para entregar “no máximo
até quinta-feira à tarde” diz não à vida.
De minha parte, e diante de tantas
limitações no dia a dia, tento compensar jogando Candy Crush. E peço para todos
aqueles que têm facebook: ajudem-me a ter sucesso enviando-me mais vidas.
4 comentários:
Como sempre, você foi incrível. Mas talvez a potência também esteja em lutar contra essa massa compulsiva. O ato repetitivo é alienante, não cria. Te ajuda a ficar submerso frente a tantas frustrações, mas não a combatê-las e transformá-las.
O devir a ser, com todas as suas potências, são lutas, embates que nos fortalecem e nos humanizam.
Concordo com tudo. mas que o que seria do "sim à vida" sem o "não à ela"?
Giannnnn o que seria de minha vida sem suas reflexões !!! Ainda mais sobre o Candy Crush ( não estou sendo irônica juro) que ja faz parte da minha vida ( pessoas simples, diversões simples) Beijos meu querido!
Amanda Dokas Anglo
Nos seus últimos posts do blog, você menciona uma admiração por espíritos livres como os dos piratas, uma necessidade de fuga de todos os aparatos burocráticos, denuncia a supremacia de um mundo vazio, enuncia a "falta de vida" que te cerca...
Será que estou muito errada ao afirmar que os últimos tempos mostraram-se de pouca beleza e arte para você?
Ou a beleza e a arte, só se realizam em forma de lamento? MELANCOLIA =D ?Como você vê isso?Quais pensamentos tomam conta de você quanto à realidade?
Desculpa a crítica fio, é uma dúvida minha. =)
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