Anos atrás, em visita à casa de
meus pais – onde morei até o início da juventude – encontrei meu sobrinho, então
com uns quatro anos de idade. Descíamos pelo elevador quando encontramos uma
velha senhora, antiga moradora do prédio, que logo me saudou, “Quanto tempo” e “Conheci
você pequenino e agora já está um homem feito” e, após uma olhada ao meu
sobrinho, “Esse aqui é seu filho ?”. Querendo fazer graça com meu sobrinho e,
ao mesmo tempo, tentando colocar o moleque diante de uma situação nova, menti,
sorrindo: “É, esse aqui é meu filhinho”. Em seguida a senhora olhou para o
moleque e perguntou: “Como é seu nome ?”. E ele, cujo nome é Lucas, respondeu
na hora: “Mateus”.
Esse é o ponto. Não importa o
quanto tentemos ensinar o que é certo o que é errado, as pessoas aprendem pelo
exemplo. Após ser ensinado mil vezes que não se deve mentir, o moleque se viu
diante de uma situação na qual a mentira estava autorizada, e participar da
mentira inofensiva significaria construir um elo, uma cumplicidade com o tio.
Intuitivamente, o moleque concluiu que estreitar laços afetivos era mais
importante que seguir algum princípio. Ou ainda: a ordem ("não minta!") pode ser
desobedecida em certas circunstâncias. Sem querer, o garoto estava aprendendo a
ter discernimento.
A história acima serve para
ilustrar uma grande preocupação: queremos ensinar uma coisa e acabamos transmitindo
outra. O tom singelo, emancipador e quase libertário do relato contrasta com os riscos, por exemplo, do que
se ensina na escola, e de como isso pode ser entendido por alunos. Cito três
exemplos:
1) Testes de múltipla escolha. Independente
do conteúdo correto da resposta, longos anos resolvendo testes de múltipla
escolha ensinam basicamente o maniqueísmo: diante dos problemas do mundo existe
o que é certo e o que é errado e ponto final. Desaparecem as nuances e eu me pergunto
se o maniqueísmo enlouquecido em que vivemos hoje em dia não tem a ver com duas
gerações sucessivas de pessoas cuja experiência escolar nos decisivos anos da
adolescência enfatizou os testes de múltipla escolha, bem como a preparação para tais testes como fim
último da atividade escolar.
2) Sistema de notas. Não aufere
conhecimento, mas ensina que o desempenho humano pode ser expresso em valores
numéricos, e esse é a finalidade da atividade, qualquer atividade. Basta uma
intervenção racional (por exemplo, mais ou melhor estudo) para melhorar o
desempenho, aumentar o índice numérico. A partir daí, abre-se caminho para o
discurso da eficiência em detrimento da reflexão, dos meios em detrimento dos fins.
3) Apresentação dos conteúdos
como uma série de objetos. Ensina que o mundo que nos cerca é formado por uma
sucessão de objetos, à respeito das quais tomamos conhecimento: somos o sujeito
que conhece, e acabamos perdendo a capacidade de considerar que, dentre os muitos
objetos que nos cercam, também possam existir outros sujeitos. A possibilidade
de identificação com esses objetos é escassa, pois nos foram ensinados de forma
distante. Exemplo prático foi citado no post abaixo, sobre o ensino de ética em
aulas de Filosofia: “ética” é mais um objeto distante, e a maior expressão
desse distanciamento ocorre quando o aluno cola na prova de Ética.
4) Justificativa do conhecimento
através do seu emprego prático. Trata-se do utilitarismo que esvazia o puro
âmbito do saber. Aqui, o ensinamento principal é desinibir a ação, uma vez que
esta deve ter como única reflexão prévia uma rápida consideração sobre os
efeitos práticos de seus resultados.
No fundo criamos monstros.
3 comentários:
Muito interessante, parabéns professor. Infelizmente esse modelo de educação ainda é uma realidade...
oi professor que bom encontrar um blog com reflexoes suas!
penso que educacao deveria ser um instrumento para romper limitacoes e barreiras, mas sua perversao muitas vezes causa justamente o contrario.. padroniza e limita a formacao dos alunos e consequentemente suas visoes sobre o mundo.
constantemente mesmo que nao perceba (ou que perceba mas que nao saiba expressar com exatidao qual a causa de sua inquietacao) o aluno lida com os paradoxos da educacao, a propria sala de aula por exemplo é estruturada com padroes autoritarios ao mesmo tempo que o professor ensina o valor da democracia.
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