Em um desses “alegres colóquios” no último fim de semana, eu fazia fáceis previsões sobre o andar vazio da Bienal: será pixado (assim mesmo, com “x”, e que se dane a norma culta). É óbvio. Hoje em dia é mais fácil fazer previsões sobre arte do que nos tempos de Stalin e do realismo socialista.
Como todo mundo, diferencio grafite de pixação. Grafite se caracteriza pela elaboração estética mais refinada (o que inclui uso de cor e imagem), diálogo com o entorno, aspecto lúdico e proposta estética minimamente ambiciosa. Já a pixação se limita quase sempre à inscrição de um nome (seja do pixador ou de seu grupo/ gangue/ coletivo/ crew), uso predominante da cor preta, alfabeto de vaga inspiração rúnica, intervenção em área de risco (alto de prédios, viadutos, espaços tradicionais de exposição fechados e vigiados). Exemplos de grafite e da pixação estão no post abaixo, depois desse texto.
A partir dessa caracterização e das imagens abaixo, a conclusão fácil é: grafite pode ser um tipo de arte, pixação é “sujeira”. Porém, o que mais me chama atenção nas imagens que selecionei, nas três imagens, não é a diferença entre as duas formas de expressão mas a pobreza da arquitetura que serve como suporte. De fato, na cidade de São Paulo há uma abundância de superfícies verticais, brancas, cinzas, insossas, praticamente pedindo para que alguém faça algo. Na cidade, há uma forte cultura do cimento, do concreto, todo chão é cimentado, toda parede exibe o concreto. Fiação elétrica aérea, multiplicação de antenas e torres de antenas, cacos de vidro e arame farpado em concertina no alto dos muros, “plantações” de postes (jamais alinhados), tudo contribui para uma paisagem urbana francamente deteriorada. Diante disso, tanto o grafite quanto a pixação (em que pesem suas diferenças) cumprem uma bela função: chamam nossa atenção para a feiúra que nos cerca.
E aí vem a Bienal com suas propostas, "inovadoras" já há cinquenta anos. Ninguém mais agüenta a arte conceitual, do tipo que costuma ser exposto nas bienais. Desde décadas que as instalações artísticas contemporâneas giram em torno da pergunta, “o que é arte?” e, francamente, ninguém mais suporta isso. Alguns artistas já deixaram isso pra traz. Fernando Botero já deixou isso para trás, Lucian Freud já deixou isso para trás, só para citar dois. Ou melhor: eles certamente continuam pensando no significado de arte, mas pelo menos não nos impingem suas perguntas. E eis que vem a Bienal nos propor nada menos que um andar vazio, para que possamos refletir sobre a ausência, a criação de sentido, blábláblá. Ainda existe espaço para esse tipo de questionamento ?
A proposta da Bienal (http://www.bienalsaopaulo.globo.com/) diz, sobre o espaço vazio do segundo andar:
É nesse território do suposto vazio que a intuição e a razão encontram solo propício para fazer emergir as potências da imaginação e da invenção. Esse é o espaço em que tudo está em um devir pleno e ativo, criando demanda e condições para a busca de outros sentidos, de novos conteúdos.
Assim não dá. Na década de 1950, Robert Rauschenberg já expunha suas telas em branco, com um projeto que não se diferia em nada de “fazer emergir as potências da imaginação etc.” Apresentar uma proposta nesse sentido a essa altura do campeonato, só pode soar como empulhação ou provocação. Não acredito que o curador seja um enganador, resta portanto a hipótese de provocação: então, que sejam bem-vindos os pixadores. Sejamos todos pixadores e vamos emporcalhar o segundo andar da Bienal. Porém, não há um só lugar nessa história toda para onde olhemos e consigamos vislumbrar um fiapo de sanidade: a única virtude da pixação é chamar atenção para a pobreza da nossa arquitetura, mas o espaço aberto para a intervenção fica justamente no Pavilhão da Bienal, um dos raros exemplos de boa arquitetura da cidade.
Uma última palavra sobre pixadores, uma vez que os grafiteiros não apareceram na Bienal, pelo menos até o momento em que escrevo. Até onde percebo, os pixadores tem como características:
- o hábito de formação de grupos,
- a contestação da ordem em nome de valores que só eles conhecem ou reconhecem como verdadeiros (convertendo-se assim em uma minoria de portadores exclusivos da verdade),
- valorização de feitos físicos que implicam em risco ou coragem,
- valorização pura e simples da ação como forma de expressão que antecipa ou substitui o pensamento ou o discurso,
- manutenção de códigos próprios de comunicação e identificação,
- reconhecimento da violência como parte integrante ou possível de suas ações.
Tudo isso aproxima esses grupos daquilo que o século passado produziu de mais sórdido, e que continua existindo até hoje. Chamemos a besta pelo nome: esse grupos exalam um nauseabundo cheiro de fascismo. Só não sentimos mais claramente seu cheiro porque o fedor da cidade é ainda maior.