Na outra semana, em mais um daqueles “alegres colóquios”, fui parar ao lado de uma mesa “sex-and-the-city”, em um bar que não freqüentava fazia tempo. As mesas “sex-and-the-city” são muito comuns de uns tempos pra cá, formadas por grupos de mulheres que fumam e bebem despreocupadamente enquanto comentam em voz alta sua vida emocional e sexual – todas elas imaginando que são Carries, quando na verdade não passam de Charlottes.
Chamou minha atenção o fato de que as seis moças da mesa fumavam ao mesmo tempo (um cigarro aceso ajuda muito na ilusão de ser Carrie, assim como o diploma de jornalismo: eu estava em um bar freqüentado em peso pela ECA-USP), e pelo menos duas das moças da mesa praticavam um hábito irritante: para evitar jogar fumaça na cara das amigas (que, curiosamente, eram todas fumantes), as duas faziam um estranho contorcionismo que levava seus braços a se projetarem a distância, mantendo o cigarro longe da própria mesa e, obviamente, na MINHA cara. Da mesma forma, ao soltar a fumaça, torciam desesperadamente a boca para não incomodar as amigas fumantes, jogando a fumaça em outra direção e limitando-se a incomodar a mim, apenas um desconhecido.
E aí é que está o ponto. Em nenhum momento, sequer pensei em reclamar, pois tomei a decisão consciente de entrar em um bar que aceita fumantes. Portanto, eu sabia o que me esperava e continuarei frequentando o bar e fazendo comentários irônicos (ou mesmo maldosos) sobre pessoas que fumam na mesa ao lado, em voz baixa.
Esse episódio todo faz pensar na lei que proíbe cigarro em locais fechados. Me parece estupidamente jacobina uma lei como essas, vetando indiscriminadamente o fumo em todos locais fechados. Estou cansado de ouvir amigos fumantes falarem a respeito do prazer que o cigarro proporciona, e jamais negaria tal prazer a um amigo (tenho até cinzeiros na minha casa). O grande problema se encontra no fumo em lugares fechados de freqüência compulsória. Se o bar ou restaurante aceita fumantes, é escolha minha entrar ou não. Porém, se um local de frequência compulsória aceita fumantes, me vejo obviamente prejudicado enquanto não-fumante. Elevadores, salas de aula, transporte coletivo, cinema, exposições... nesses locais, não pode valer o argumento “não entro se não quero respirar fumaça”. Mas, sobretudo, locais de trabalho: sou obrigado a freqüentá-lo, sou obrigado a respirar fumaça alheia. Eu como meu lanche no local de trabalho e, sinceramente, se um semi-desconhecido despeja sua carga nefasta de nicotina e alcatrão, devidamente processada por pulmões francamente apodrecidos, em cima do misto quente que eu pretendia comer, automaticamente está legitimada minha reação anti-tabagista histérica.
Diante do crescimento da histeria anti-tabagista, legítima ou não, os fumantes contra-atacam. E miram justamente naquele que é o argumento mais estúpido que pode ser utilizado contra o tabaco: o argumento da saúde. Voltando ao nosso bar do fim de semana, eu jamais poderia reclamar do mal que o cigarro das Carries-de-periferia estavam fazendo aos meus pulmões, uma vez que, ao mesmo tempo, eu voluntariamente agredia um outro órgão vital, meu fígado. Claro está que eu não agredia o fígado das moças, embora elas atingissem meus pulmões, mas mesmo assim o argumento do “seu cigarro está me matando” soaria meio imbecil.
Quando penso na questão, tento deslocá-la para o lado ético. O prazer que um fumante sente com suas tragadas é diretamente proporcional ao desprazer do não-fumante diante do cheiro da fumaça. Aqui não conta o pulmão, a saúde ou aumentar e diminuir a expectativa de vida em um tempo mínimo qualquer, mas o simples desprazer, que pode incluir náuseas e sintomas físicos bem evidentes e imediatos. Portanto, o ato de acender um cigarro implica em uma escolha a ser feita: será que o meu prazer pessoal vale o desprazer que provoco nos outros ? Acender um cigarro diante de não-fumantes é o ato que responde a pergunta. Aos não-fumantes, cabe contemplar as escolhas éticas que os fumantes fazem cada vez que acendem um cigarro, e avaliar seu universo de valores a partir daí.
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(A foto foi tirada do livro de Anne Taintor, "I can't be good all the time"; a referência - pela segunda vez - a "alegres colóquios" foi tirada de... adivinhe. Dou um barril de azeite grego para esfregar no corpo para quem descobrir de onde veio)