Alberto Manguel, em seu famoso ensaio sobre Alice no País das Maravilhas, desenvolve o tema da irracionalidade do mundo capitalista, analisando o comportamento do Chapeleiro Maluco. Trata-se do arquétipo do burguês, dispondo daquilo que não lhe pertence (afinal, a mesa de chá, na qual ele é soberano, pertence ao Coelho) e profundamente egoísta: lembremos que cada vez que o chá acaba, todos avançam uma cadeira, ou seja, somente ele, Chapeleiro, primeiro da fila, terá sempre uma xícara limpa diante de si. A mesa de chá pode ser entendida como o próprio mundo, que se torna devastado após a passagem do burguês. Senhor do tempo (“Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu”, diz a Alice, ameaçadoramente), ele ainda exerce a censura (calando a boca de Alice, mal ela começa a falar) e jamais prestando conta de seus atos: ao final do livro, no Julgamento, o Chapeleiro recusa-se a tirar o chapéu que, afinal, não lhe pertence, ele é apenas um vendedor de chapéus.
Mas, voltando à busca de Alice, qual o resultado de sua jornada ? Em que momento da narrativa (se é que em algum) nossa personagem se reconcilia com si mesmo, respondendo à pergunta que não para de persegui-la, “quem é você” ? A resposta aparece logo no capítulo 1, embora Alice não se dê conta. Após beber de uma garrafa e começar a encolher, Alice teme diminuir até desaparecer. E pergunta: “Nesse caso, como eu seria ? E tentou imaginar como é a chama de uma vela depois que ela se apaga. Pois não conseguia se lembrar de jamais ter visto tal coisa”. Desatenta, Alice ! Pois ela sabe muito bem o aspecto que algo tem depois que desaparece. Poucas páginas antes, enquanto caía na toca do Coelho, Alice pensou em Dinah, sua gata, e observou que esta sentiria sua falta à noite. Ou seja, uma vez que Alice desaparece, a única coisa que restaria seria sua memória, a saudade de Alice. E é aqui que ela passaria , finalmente, a existir, a ser: nós somos o que os outros percebem de nós. Nossa existência só é real na medida em que vivemos na mente de outra pessoa (metaforicamente, a gata Dinah).
Com essa conclusão, a frase da Duquesa (cap.9), aparentemente uma das frases mais confusas ou insanas de todo aquele universo louco, ganha uma nova dimensão:
“... e a moral disso é: ‘seja o que você parece ser’... Ou, trocando em miúdos, ‘Nunca imagine que você mesma não é outra coisa senão o que você poderia parecer aos outros do que o que você fosse ou poderia ter sido não fosse o que você não tivesse sido parecido a eles ser de outra maneira”
Através da memória, resgatamos essa presença na mente dos outros, portanto, nos damos conta da nossa existência. E a memória de Alice só irá ser provocada em Dinah porque entre as duas existe um afeto: a própria Alice passa a aventura recordando-se (chamando à memória) da sua gata querida. Nós só existimos nos outros - portanto, só percebemos nossa existência - quando provocamos afetos, que alimentam a memória e provocam a lembrança.
Ou, como diria a Duquesa: “... e a moral disso é, ‘Oh, é o amor, é o amor que faz o mundo girar’ ”.
Mas, voltando à busca de Alice, qual o resultado de sua jornada ? Em que momento da narrativa (se é que em algum) nossa personagem se reconcilia com si mesmo, respondendo à pergunta que não para de persegui-la, “quem é você” ? A resposta aparece logo no capítulo 1, embora Alice não se dê conta. Após beber de uma garrafa e começar a encolher, Alice teme diminuir até desaparecer. E pergunta: “Nesse caso, como eu seria ? E tentou imaginar como é a chama de uma vela depois que ela se apaga. Pois não conseguia se lembrar de jamais ter visto tal coisa”. Desatenta, Alice ! Pois ela sabe muito bem o aspecto que algo tem depois que desaparece. Poucas páginas antes, enquanto caía na toca do Coelho, Alice pensou em Dinah, sua gata, e observou que esta sentiria sua falta à noite. Ou seja, uma vez que Alice desaparece, a única coisa que restaria seria sua memória, a saudade de Alice. E é aqui que ela passaria , finalmente, a existir, a ser: nós somos o que os outros percebem de nós. Nossa existência só é real na medida em que vivemos na mente de outra pessoa (metaforicamente, a gata Dinah).
Com essa conclusão, a frase da Duquesa (cap.9), aparentemente uma das frases mais confusas ou insanas de todo aquele universo louco, ganha uma nova dimensão:
“... e a moral disso é: ‘seja o que você parece ser’... Ou, trocando em miúdos, ‘Nunca imagine que você mesma não é outra coisa senão o que você poderia parecer aos outros do que o que você fosse ou poderia ter sido não fosse o que você não tivesse sido parecido a eles ser de outra maneira”
Através da memória, resgatamos essa presença na mente dos outros, portanto, nos damos conta da nossa existência. E a memória de Alice só irá ser provocada em Dinah porque entre as duas existe um afeto: a própria Alice passa a aventura recordando-se (chamando à memória) da sua gata querida. Nós só existimos nos outros - portanto, só percebemos nossa existência - quando provocamos afetos, que alimentam a memória e provocam a lembrança.
Ou, como diria a Duquesa: “... e a moral disso é, ‘Oh, é o amor, é o amor que faz o mundo girar’ ”.
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[O ensaio de A.Manguel chama-se "À mesa com o Chapeleiro Maluco" e está no livro do mesmo nome (pela Cia.das Letras) / A observação da Duquesa lembra tremendamente o último verso da Divina Comédia, quando Dante se refere a "l'amor che move il sole e l'altre stelle" / Agradeço ao pessoal do seminário PET-Direito (USP) pela inspiração].