domingo, 25 de abril de 2010

Que mundo é esse ?



"Sei que alguma coisa interessante sempre acontece – pensou – cada vez que eu tomo qualquer coisa; então vou só ver o que é esta garrafa". (Alice, 4)

"... mordiscou uma ponta do pedaço de cogumelo da mão direita para experimentar o efeito: num instante sentiu uma pancada violenta". (Alice, 5)


Gosto das modas. Elas nos permitem pensar em coisas que, em outras circunstâncias, passariam desapercebidas. O mega-lançamento do super filme em 3D (que ainda não vi) “Alice no País das Maravilhas”, serve como desculpa para revisitar o clássico de Lewis Carroll, bem como para entrar em contato com a vasta bibliografia a seu respeito. Aproveitando os lançamentos – e todo fuzuê editorial – provocado pelo filme, tenho agora em mãos duas edições caprichadas de Alice, a da Editora Zahar (que inclui as figuras originais de John Tenniel, bem como a segunda história de menina, “Através do espelho”); e a da Editora Cosacnaify (com tradução e comentário de Nicolau Sevcenko e gravuras por Luiz Zerbini).

Começando a leitura, descubro que jamais havia lido o texto original, mas apenas versões ou adaptações infantis. Além disso, há o peso da versão Disney em desenho animado, cujas imagens – que eu julgava esquecidas – me vêm à memória frequentemente ao ler as diversas cenas do livro. Mas, o que mais me chamou a atenção foi a riqueza da narrativa e a multiplicidade de leituras sugeridas.

Em primeiro lugar, percebo que Alice é uma personagem que se entedia. Primeira página: “Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer...”. Fugindo do tédio, Alice parte em sua aventura, que pode ser considerada uma busca. Alberto Manguel, leitor atento de Lewis Carroll, identifica na jornada de Alice uma semelhança com a busca de Ulisses na Odisséia. Em conversa com o gato Cheshire, já bem avançada a aventura, Alice pergunta sobre a saída, qualquer saída “desde que chegue em algum lugar”. E o gato observa que, nesse caso, tanto faz o caminho a ser tomado, lembrando do aspecto labiríntico da busca de Alice (sobre labirintos, veja o post de 22 de março).

Certamente a busca de Alice é nada menos do que a busca de si mesmo. Ou seja, de sua identidade. Logo ao entrar na toca do coelho, marcando o início da sua jornada, Alice cai. Bem devagar, mas cai, e a perda do chão é uma metáfora forte demais para ser ignorada: trata-se da perda do referencial espacial mais básico. (Lembremos que no País das Maravilhas, o próprio Tempo tem um significado todo próprio, conforme o Chapeleiro Maluco revela a Alice em meio a um chá das 5 infinito). Aliás, os próprios pensamentos que passam pela cabeça de Alice durante aquela queda inicial sugerem uma tentativa de reafirmação de seu próprio eu: Alice observa atentamente e toca os objetos que vê durante a queda (guarda-louças, estantes de livros, potes de geléia – talvez buscando uma reconciliação com o espaço); Alice apela para a memória, lembrando de casa (e da opinião que teriam sobre ela, “corajosa” – é no âmbito do lar, ouvindo os pais, que a criança constrói sua primeira identidade) e lembrando de seus afetos (a gata Dinah, que “vai sentir minha falta essa noite”).

Já em meio às andanças pelo País das maravilhas, ou seja, durante sua busca, Alice cruza várias vezes com o questionamento explícito sobre sua identidade. Assim logo no começo da aventura, quando as coisas começam a acontecer de um jeito diferente, Alice pergunta: “Eu era a mesma quando me levantei esta manhã ?... Afinal, quem sou eu ? Ah, este é o grande enigma!”. Mais adiante, a lagarta pergunta, “Quem é você ?” e, no mesmo diálogo, Alice disse que está mudada depois que caiu no País das Maravilhas, e explica: “Não consigo me lembrar das coisas como antes”. Sem memória, como constituir uma identidade ? Diante da Pomba, ainda no mesmo capítulo, Alice, bastante “insegura”, balbucia: “Eu... eu sou apenas uma menininha !” Impossível maior precisão: “Com todas essas mudanças... nunca sei ao certo o que vou ser de um minuto para o outro”. Ou seja, ser implica em estabilidade, permanência. Criar hábitos. Alice não habita o País das Maravilhas, e essa é a fonte de sua insegurança, da perda do seu chão.

Porém, existe algo de tremendamente perturbador nessas mudanças aparentemente insensatas que ocorrem no País da Maravilhas e que o aproximam do nosso mundo. Pois todas as esquisitices e estranhas mudanças que ocorrem no País das Maravilhas seguem uma racionalidade. Apenas não estamos habituados com ela. O gato Cheshire argumenta racionalmente para provar aquilo que foi identificado como sua “loucura”. Diz ele: “um cachorro rosna quando está zangado e abana a cauda quando está contente. Oras, eu rosno quando estou contente e abano o rabo quando estou zangado. Portanto, sou louco”. Quod erat demonstrandum. O mais perturbador no diálogo não é a argumentação racional do louco provando sua suposta loucura, mas sim o fato de que por trás do comportamento pouco convencional do gato está um método, uma razão. O gato não rosna e abana a cauda aleatoriamente, há causas específicas que provocam cada um desses atos. Da mesma forma, quando a Lebre lhe oferece “mais chá”, Alice responde: “Como não tomei nenhum, não posso tomar mais”. Ao que o Chapeleiro Maluco, com lógica impecável, argumenta: “Você quer dizer que não pode tomar menos; é muito mais fácil tomar mais do que nada”.

E aqui chegamos ao grande encanto do livro. Criando um País das Maravilhas cuja racionalidade resulta em episódios e comportamentos aparentemente loucos, Carroll põe em jogo uma reflexão sobre o nosso próprio “país”. Pois o nosso mundo também está fundado em um certa racionalidade, que instrui os nossos atos, constrói a nossa lógica. E muitas vezes o resultado de nossa ação racional aparece como loucura e nós simplesmente não enxergamos essas loucuras, de tão bem disfarçadas de razão que elas estão.

........................................................................ (continua)

12 comentários:

Stephanie Teramae disse...

"Vendo:
Engraçadas as duas imagens acima. O Chapeleiro Maluco - com uma mão na altura da barriga e o braço esticado - parece tocar uma guitarra imaginária, enquanto Hendrix parece levar aos lábios uma taça de chá invisível . Juro que foi sem querer."


Ssssssssóó.... Rs.
Quem sabe hoje eu termino de ler Alice, dai eu venho ler seu post. ;)

Lucas Bispo disse...

Bem legal o texto! Preciso ler o livro, mas em ano de vestibular complica muito...Assisti ao filme e me desapontou um pouco em relação ao que eu esperava.

Bá :) disse...

Oi Professor!
Adorei a outra perspectiva dada a história da Alice.Como muita gente,só tenho as imagens da Disney comigo.Fiquei com vontade de ler o livro e ver essas coisas que você fala no seu texto! :)

Beijos

Alê Bezerra disse...

Chega a ser curioso, pensar sobre o tempo que se dedica para responder uma única pergunta, apararentemente, idiota e que não tem uma resposta assim... pronta: quem é você?
Alice, O Mundo de Sofia, a própria Elegância do Ouriço e tantosss outros.

Honey and Milk disse...

Ahh eu nunca assisti o filme da Disney da Alice no país das maravilhas porque quando eu era pequena eu ficava assustada...
Não sei se eram as cores fortes ou a cara da Rainha de Copas... mas eu tinha MUITO medo...
Com isso criei um preconceito irracional em relação a Alice...nunca li o livro e mal sei a história....
Mas como você disse no post, as modas fazem a gente repensar algumas coisas... e foi justamente o que aconteceu!
Espero que dessa vez eu nao desista da Alice.. mas que eu ainda tenho uma pontinha de medo...aahh eu tenho sim!
DESAABAAAAAAAAAAAAFO

Renata M. disse...

Gigi,

como sempre o seu texto está mto agradável de ler. Este da Alice então está especialmente.
Repassei o seu blog para os meus amigos como o "aquecimento para Alice",tipo um esquenta para a aventura surreal na qual iremos embarcar.

Sabes q este que está no cinema agora é tipo uam continuação de Alice, né? Ela volta ao País das Maravilhas, agora com 19 anos.
Não vejo a hora de assistir, só não fui ainda pq as sessões devem estar mega lotadas.

Beijos de sua fã,
Rê.

Giancarlo Silkunas Vay disse...

Ótima análise!

Unknown disse...

Professor, adoro seus textos, infelizmente não tenho muito tempo pra ler sempre, mas quando começo a ler, não consigo parar mais.

Muito interessante essa reflexão sobre racionalidade...preciso ver o filme ainda, mas certamente ficarei atenta a esses detalhes...

Muita saudade das suas aulas, pena que um dia eu teria que sair do anglo...

Unknown disse...

Alice era meu desenho predileto quando criança. Eu lembro que prestava muita atenção às falas das personagens pra tentar entender o que estava acontecendo, porque diversas partes da história não faziam sentido pra mim. Lendo o seu texto as dúvidas vieram a tona novamente, algumas foram esclarecidas pela sua análise, como a pergunta da lagarta e o gato dizendo à Alice que o caminho não importava. Por restarem ainda alguns pontos obscuros vou procurar o livro.E quem sabe desenterrar minha fita cassete de Alice e assistir depois de tanto tempo.
Beijos carinhosos...

Stephanie Teramae disse...

Terminei agorinha de ler o livro, e gostei! Pela simplicidade, pela riqueza de imagens e por ser uma história infantil (embora muitos adultos o estejam lendo, Rs).
Eu também nunca assisti a versão da Disney, nem conhecia a história (criança sem infância né, rs!). E fiquei surpresa ao saber que tudo não passou de um sonho.

Bom, uma coisa que me chamou bastante a atenção foi o fato de a Alice querer sempre utilizar seu conhecimento e se gabar de ser uma criança "melhor que as outras" nesse sentido. Acho que a metáfora sobre a perda do chão tem a ver com isso também... O conhecimento era o chão da Alice, e ao longo da narrativa ela o perde.
Na sua "busca incessante pelo entendimento do mundo" em que está, o País das Maravilhas, de nada serve saber multiplicar ou recitar poemas. Talvez porque esse mundo seja o seu interior. Talvez porque buscar essa "identidade" implique em abandonar o mundo externo (real) e afundar-se dentro de si (sonho). Ou porque a resposta para a pergunta "Quem é você?" deva ser encontrada vivenciando coisas novas, e não seguindo a teoria de livros espalhados por aí.

"...e de que serve um livro sem figuras nem diálogos?"
Partindo dessa afirmação, só podemos concluir que "Alice no País das Maravilhas" deve servir pra muita coisa... Só precisamos ler melhor as entrelinhas.

Raphael Felice disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Raphael Felice disse...

Jimi hendrix e lewis carroll, valleys of neptune e país das maravilhas, a parede de guitarras e alice, LSD e cogumelos. Todos passagens para outras realidades. Fuga. Bons caminhos, professor..