sábado, 3 de abril de 2010

O mundo como ele é (ou: assépticos e insossos)



Os bárbaros estão à solta pela Europa; a devastação da epidemia faz igualmente vítimas; a tirania dos cobradores de impostos pilha os fundos e as fortunas escondidas nas cidades; os soldados se esgotam. Uma fome tão atroz e abateu, que sob seu domínio os homens devoraram a carne humana; mães degolaram seus filhos, os cozinharam, e com seus corpos saciaram a fome. Os animais, acostumados aos cadáveres daqueles que pereciam pela fome, pelo ferro, pela epidemia, matam os que ainda estão vivos: não contentes com a carne dos cadáveres, atacam a espécie humana. Assim, as quatro pragas do ferro, da fome, da epidemia e dos animais devastam o mundo inteiro, e as previsões do senhor pelos seus profetas se realizam.


Para muitos, essas palavras soam familiares: trata-se de um trecho das crônicas de Idácio, bispo de Aquæ Flaviæ, cidade romana na península ibérica. Escrevendo no século V, Idácio presenciou os momentos finais do Império Romano, notadamente a invasão dos bárbaros suevos e seu estabelecimento no norte da península. Na suas crônicas – e particularmente no trecho acima – chamam atenção os aparentes exageros, por exemplo, ao falar de mães que degolaram e cozinharam seus filhos para aplacar a fome. Além disso, o bispo fala de animais atacando a espécie humana, afirmação que causa espanto se lembrarmos que ele vivia em uma cidade, e os tipos de animais com que ele cruzava (cães ? gatos ? galinhas ?) não me parecem muito ameaçadores.

A meu ver, o bom bispo até era bem intencionado: ele apenas descrevia o mundo de forma a adaptá-lo a suas, digamos, estruturas mentais. Impregnado de religiosidade e observando o que parecia ser o fim dos tempos (afinal, o poderoso e aparentemente inabalável Império Romano desmoronava), Idácio ajustava a realidade que via à narrativa bíblica que tinha na cabeça, e cuja verdade era inquestionável. E essa narrativa falava do fim dos tempos, da realização das profecias. Oras, ao final da Bíblia, no livro da Revelação ou Apocalipse, o apóstolo João descreve as visões que teve sobre o fim dos tempos, incluindo a terceira visão, onde aparecem os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (representando a Guerra, a Fome, a Epidemia e a Besta). Difícil para Idácio não julgar que presenciasse o Juízo Final, pois o Império desmoronava diante da Guerra (as agressivas incursões de povos bárbaros), que deixava um rastro de Fome e Epidemia (em corpos fragilizados pela ausência de alimentos). Para completar, faltava a Besta, sob a forma dos animais, e Idácio forçou a barra para adequar seu comportamento à profecia bíblica que tinha na cabeça.

Nossa tendência é rir de Idácio, talvez com um sorriso condescendente: “Nossa, as pessoas eram tão bobinhas na Idade Média !” Ou então: “Olha só o que a religião faz com a cabeça das pessoas, impede que elas vejam o mundo como ele realmente é !”. Mas, me pergunto, será não fazemos o mesmo ? Será que não torturamos o mundo o tempo todo, para que ele se revele conforme nossas estruturas mentais ? Temos essa estranha dificuldade de enxergar as coisas “como elas realmente são”, a tal ponto que deveríamos colocar em cheque a própria existência de coisas “como elas realmente são”. Talvez as coisas não “sejam”: as coisas apenas “são” a partir da nossa elaboração. Ou seja, nossa percepção faz parte do Ser das coisas.

A cada um, suas idiossincrasias O que me interessa aqui é apenas contrapor, em linhas gerais, a mentalidade de um bispo Idácio – que só consegue ver o mundo a partir da janela da Igreja – e a nossa, impregnada de racionalidade e cientificismo. Essa nossa janela ou filtro técnico-científico se manifesta, por exemplo, na crescente dificuldade que temos em lidar com nuances de comportamento. Sempre uso como exemplo a melancolia, verdadeiro estado de espírito em extinção, substituída pela depressão. Diagnosticada a depressão (ou seja, uma vez construído um discurso científico sobre a depressão), ela se converte em doença, da qual fugimos. O resultado não é uma vida mais sadia, mas sim viver com medo. Hoje, qualquer tristeza é sintoma, qualquer melancolia é suspeita – quando na verdade tristeza e melancolia são apenas estados de espírito, muito humanos, e apenas isso.

Tenho a intuição de que a depressão causa um efeito colateral chamado “medo a depressão” e que, por sua vez, é fator causador de depressões. Me aprece um escândalo a forma como a medicina lida com isso. Seja como for, em outros tempos o melancólico escrevia um samba (“pois o samba é tristeza que balança...”), enquanto hoje ele busca um médico, tremendo diante do fantasma da depressão.

No mesmo registro, certos estados de alegria ou euforia, que costumam ser descritos pelo discurso científico como resultado da liberação de endorfina na corrente sanguínea. Claro, a partir de uma descrição como essa, para que tentar ser alegre, se os efeitos da alegria podem ser provocados quimicamente através da ingestão de uma substância sintética ?

Mas o caso mais sério ainda me parece o das doenças degenerativas cerebrais. Antigamente, um velho ficava “gagá”; hoje em dia, uma pessoa idosa tem o mal de Alzheimer. Sem dúvida, a palavra “gagá” pode trazer algo de depreciativo, porém nos remete a um universo familiar, a uma linguagem de criança. Talvez na sua origem, a palavra “gagá” tenha sido usada pela primeira vez por um neto referindo-se ao avô. Já a palavra “Alzheimer” tem algo ao mesmo tempo tenebroso e áspero, na sua cientificidade germânica. O simples uso da palavra “Alzheimer” causa apreensão, nos remete a um mundo de corredores brancos, médicos de jaleco, cheiro de éter e, finalmente, de morte.

E aqui chego onde queria. A preponderância do discurso científico e a consequente multiplicação das patologias não apenas define a forma como vemos o mundo, mas também resulta:

1 – na ingestão em larga escala de substâncias químicas, cujos efeitos finais mal conhecemos com exatidão.
2 – na Grande Internação, uma vez que TUDO pode (e deve) ser tratado. Aqui volta o exemplo dos idosos: o que é melhor para o paciente, ser tratado de Alzheimer no hospital asséptico ou permanecer no lar junto a pessoas queridas (como o neto que o chama de gagá) ?
3 – no estreitamento do âmbito do normal. Atualmente, a normalidade torna-se impossível, pois todos temos um desvio (e todo desvio foi classificado). Além disso, a plena normalidade torna-se não apenas inalcançável, como também insossa: não existe nada mais chato que o normal.

E esse é o nosso mundo. Diante de cada nuance de comportamento há uma patologia, diante de cada problema um remédio. E o resultado final é nada menos que o empobrecimento da experiência.

15 comentários:

Pedro Barreto disse...

Tenho uma tristeza cada vez que leio seu blogue. Você põe a fé cristã numa posição de racionalidade nula, como se fosse um mero "ai meu Deus". No entanto, você pode perceber que essa situação é pior hoje em dia, quando a existência nem se quer pode ter um significado frente à existência materialística da lógica capitalista-burguesa. Quando se passa a se sentir impregnado de racionalidade e cientificismo, acaba-se caindo no mesmo erro, porque ambas as noções baseiam-se numa autoridade. O raciocínio da razão prática a partir da autoridade. Nisso se tem Fé na racionalidade. Porque devo confiar numa teoria de evolução, cujas bobagens em geral são ditas mediantes falsificações grosseiras e dados obsoletos, quando é apresentada por senhores como você como grandes verdades? Lembro muito bem quando disseste numa aula de cursinho que a Igreja acredita que negros não tinha alma! Leda mentira! Havia santos e santos antes da escravidão! Por que disseste isso? Não porque é mentiroso, mas porque sua razão prática leva a crer numa autoridade para você inquestionável.
O homem moderno, diferentemente do medieval, não reconhece mais a indução, a razão prática. Acha que pode saber tudo, e com facilidade, como fala Maritain em sua crítica contra o racionalismo. Tudo é fácil e inteligível.
Ora, temos Galileu Galilei, um falso mártir da ciência, cujas declarações contra a interpretação bíblicas em suas teses não provadas (não conseguiu contra argumentar a paralaxe) levaram-no à condenação. Agora é tomado como um tipo de "santo cientista".
Eu rejeito o pensamento moderno, rejeito, tenho nojo a ele. E você, caro professor, está mais controlado por ele do que pensa. Suas verdades são tão inquestionáveis quanto às do medieval o qual você despreza com ironia. Só que ele reconhece esse dogmatismo. Você e todo mundo moderno, não.
Estudando na Faculdade de Direito, reconheço isso. E agora tenho visto esse lixo impregnado no direito nos métodos de análise e no direito. Graças a Deus boas leituras, Hugón, Gilson, Garrigou-Lagrange, Finnis, Villey, Maurras (esse com ressalvas), Schmitt e Plínio Salgado estão me alertando quanto à loucura na pretensa racionalidade moderna.
Honestido: é algo que não existe no mundo da pretensa racionalidade, chamado racionalismo. Viva à filosofia do senso comum.

carlavitoria disse...

õõõiiinn professor
=)

Quando eu ouvi esse texto do bispo na tua aula, logo me vieram mil divagações comparando essa onda do mundo acabar em 2012 com o que acontecia na cabeça daqueles que assistiram a decadência do império romano.
Legal ler sobre o que a gente acaba, inevitavelmente, se não acreditando, ao menos parando pra pensar um pouco a respeito.
Acho que o maior medo das pessoas é desconhecer, é tão confortável pensar que se pode evitar todas as aflições que perturbam a raça humana desde a sua origem. A ciência nos traz essa praticidade: uma simples pílula, e lá se vai toda ansiedade, toda a solidão.
Assim como a religião naquela época, e hoje ainda, com todos seus dogmas e estilos de viver que garantem uma estadia no tão desejado reino dos céus.
(e não é o que fazem as revistas científicas pregando uma dieta balanceada e exercícios regulares por míseros 5, 10 anos a mais de permanência sob a terra?)
Mas sempre existem as exceções, os insaciados com os métodos e penitências da religião e da ciência, e que um dia inventarão outro modo de enxergar completamente diferente, modo este que também se tornará obsoleto alguma hora.
Talvez, apenas talvez, a experiência não tenha empobrecido, mas somente mudado de forma.

Adorei o texto, beeeijos.

Gian disse...

Pedro:
1 – “Vc põe a fé cristã numa posição de racionalidade nula”. Ué, lógico, pois se trata de fé. Se por um lado jogo no lixo a racionalidade da fé (o que é meio óbvio), por outro estou pronto para discutir seriamente (e reconhecer a existência)a racionalidade da teologia cristã.
2 – “Disseste numa aula de cursinho que a igreja acredita que negros não tem alma”. Vc me citou errado. Eu disse que a igreja acreditAVA que a alma dos negros só seria salva se fossem para a América purgar os pecados de sua “raça” através da escravidão. Vc está distorcendo minhas palavras para adequá-las à sua crença, está agindo como o próprio bispo Idácio ! Claro, sem má fé, isso apenas faz parte da forma como vê o mundo.
3 – “Suas verdades são tão inquestionáveis quanto às do homem medieval”. Se achasse isso, não escreveria um texto questionando a racionalidade moderna. Pois sei que não posso jogar fora o bebê coma água do banho: a razão é o único instrumento que tenho para criticar os excessos da razão técnico-cientifica (ou, se preferir, “instrumental”, para manter o registro frankfurtiano).
4 – “Graças a deus boas leituras: ... Plínio Salgado”. DÁ UM TEMPO !!!

Gian disse...

Carla:
1 - "O maior medo das pessoas é desconhecer". Acho que é por aí, construímos explicações racionais de todas as coisas porque temos MEDO.
2 - Adorei a idéia de obter a salvação através de uma dieta balanceada e exercícios !!!

Mariana Teresa Galvão disse...

Caramba, Schmitt era conhecido como "filósofo maldito"... inclua-o no dá um tempo também.

O humano sempre busca apoios, né? Religião, Ciência, até o Direito.


Eu me apoio em todos eles.

Honey and Milk disse...

"Os bárbaros estão à solta pela Europa"! hahahaha Essa frase definitivamente te encantou não?!Hahahaha

Adorei o texto, e depois dessa aula no cursinho fiquei pensando por um tempão sobre o assunto ( praticamente babando na apostila durante a aula de biologia..hahaha)

De fato, acredito que as pessoas "adaptem" alguns fatos para que estes, de alguma forma, encaixem-se em suas filosofias de vida. Exatamente da mesma forma que eu tento relacionar todas as letras de música com algum momento da minha vida, ás vezes distorcendo aqui e ali algumas coisinhas pra que se encaixe com maior perfeição!
Amo seu blog, de verdade! hahahah

Beijoo giaan!

Ps: nada mais prático do que a salvação em cápsulas ou em uma série de exercícios! Viva a sociedade do macarrão e salvação instantâneos, isso sim!

Pedro Barreto disse...

Não se trata de minha má fé.
Plínio Salgado escreveu coisas ótimas, e adquiri vários livros dele para conhecer. Fazem pouco caso dele por causa da autoridade que professores de cursinho dão aos cânones da História brasileira... Por que não falaram da Quarta Humanidade? Ou que o Integralismo é de base cristã, na doutrina social da Igreja? Tentam maquiá-lo de fascista por causa da roupagem, e esquecem que a juventude soviética faziam o mesmo... O que uma boa biblioteca como a do Largo São Francisco não faz!

Carl Schmitt é o "jurista" maldito, corrigindo a Srta. Mariana. E poucos lêem-no de verdade. Apenas acusam. É genial, e ataca valentemente a noção de direitos humanos que, segundo a doutrina moderna, é sempre "sopesável" (ou seja, é um flatus vocis prático). Schmitt + Villey mostram a invalidade da autodeterminação ilimitada no âmbito do direito.
E Schmitt admiro muito, não só pelas obras, mas também pelos estudos que ele fez do grande Donoso Cortés, e sua visão europeia.

Quanto aos negros, lembro-me muito bem de vosso sorriso jocoso ao repetir essa adenota. A Bula Veritas Ipsa do Papa Paulo III não era conveniente de ser citada... Muito menos as obras de Régine Pernoud. Se seu tom jocoso é forte, maior é o de Joseph de Maistre comparando os constitucionalistas da Rev. Franceses com criadores de batatas, e não "plantadores"...

Quando ao medo, ao sofrimento, acho interessante tal ponto. Diferentemente das posições de filosofia negativa, encontrei a explicação mais razoável dentro do ensaio genial de Gustavo Corção: "O sofrimento do mundo".

E, seguindo, Chesterton, em sua obra "The Everlasting man": "A dead thing can go with the stream, but only a living thing can go against it." Aliás, essa obra é, hoje em dia, uma vacina. Recomendável.

Feliz Páscoa, Prof. Gian.

Mariana Teresa Galvão disse...

(Uma biblioteca do Largo São Francisco que não está disponível devido aos atos autoritários, diga-se de passagem...)

Raphael Felice disse...

Pedro, citar 50 autores nao faz com que a sua opiniao seja mais verdadeira que outras. As suas grandes verdades podem ser grandes mentiras para alguns, e é justo deixar que eles acreditem no que quiserem.
Gian, talvez os medicos sejam um pouco menos cientificistas do que se imagina. Pense na medicina cubana, nos medicos de familia, de bairro, etc. Nem sempre as soluçoes, para a medicina, estao nos remedios. Mas é certo que, pra grande maioria, é muito mais facil se apoiar em uma patologia do que aceitar, como algo natural e humano, a eterna oscilaçao de sentimentos que a gente tem. Legal o post.. Abraço

Nando Takenobu disse...

nossa, qnto comentário erudito.
enqnto eu só tenho uma coisa pra falar : DESABAFO !

Giovanna disse...

Gian, você me fez ver a vida com outros olhos, me mostrou algo que estava na minha frente que eu nem ao menos conseguia ver.

Emy disse...

Entao eh normal ser estranho, ate desejavel. E, em um mundo cheio de estranhos, eh estranho ser normal. No final somos todos normais-estranhos?
Depois dessa podemos dormir naturalmente tranquilos.

Unknown disse...

Quando ouvi o trecho inicialdo post na aula logo me veio a imagem mais marcante que tenho do livro "Ensaio sobre a cegueira" do Saramago. O que o mundo se tornou e como ele se comporta no livro eh bem semelhante ao desepero enaltecido pelo bispo.

laialadaia disse...

Somos neuróticos por natureza, a nossa natureza humana repressiva. Saúde mental é o tipo de neurose convencionalmente aceita, como gostava de mencionar Herbert Marcuse. me parece bem razoável

laialadaia disse...

Não sei se lembras professor, sou aquele aluno que tentou pretensiosamente contestar Marx no primeiro dia de aula no Tamandaré.
Herbert Marcuse no seu Eros e Civilização tenta comentar as possibilidades de uma ordem social não-repressiva, e, para isso, uma inversão total nas relações de trabalho e de interação com os elentos da experiência e em momento algum ele fala em revolução do proletariado, ao contrário, ele acredita que tal estágio será alcançado apenas com uma certa "automação plena" dos meios de produção. Mas esse é apenas um dos pontos, sua interpretação da metapsicologia freudiana é de morde o bico da mesa também.