quarta-feira, 28 de abril de 2010

Depois do espelho

(continuação)

Alberto Manguel, em seu famoso ensaio sobre Alice no País das Maravilhas, desenvolve o tema da irracionalidade do mundo capitalista, analisando o comportamento do Chapeleiro Maluco. Trata-se do arquétipo do burguês, dispondo daquilo que não lhe pertence (afinal, a mesa de chá, na qual ele é soberano, pertence ao Coelho) e profundamente egoísta: lembremos que cada vez que o chá acaba, todos avançam uma cadeira, ou seja, somente ele, Chapeleiro, primeiro da fila, terá sempre uma xícara limpa diante de si. A mesa de chá pode ser entendida como o próprio mundo, que se torna devastado após a passagem do burguês. Senhor do tempo (“Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu”, diz a Alice, ameaçadoramente), ele ainda exerce a censura (calando a boca de Alice, mal ela começa a falar) e jamais prestando conta de seus atos: ao final do livro, no Julgamento, o Chapeleiro recusa-se a tirar o chapéu que, afinal, não lhe pertence, ele é apenas um vendedor de chapéus.

Mas, voltando à busca de Alice, qual o resultado de sua jornada ? Em que momento da narrativa (se é que em algum) nossa personagem se reconcilia com si mesmo, respondendo à pergunta que não para de persegui-la, “quem é você” ? A resposta aparece logo no capítulo 1, embora Alice não se dê conta. Após beber de uma garrafa e começar a encolher, Alice teme diminuir até desaparecer. E pergunta: “Nesse caso, como eu seria ? E tentou imaginar como é a chama de uma vela depois que ela se apaga. Pois não conseguia se lembrar de jamais ter visto tal coisa”. Desatenta, Alice ! Pois ela sabe muito bem o aspecto que algo tem depois que desaparece. Poucas páginas antes, enquanto caía na toca do Coelho, Alice pensou em Dinah, sua gata, e observou que esta sentiria sua falta à noite. Ou seja, uma vez que Alice desaparece, a única coisa que restaria seria sua memória, a saudade de Alice. E é aqui que ela passaria , finalmente, a existir, a ser: nós somos o que os outros percebem de nós. Nossa existência só é real na medida em que vivemos na mente de outra pessoa (metaforicamente, a gata Dinah).

Com essa conclusão, a frase da Duquesa (cap.9), aparentemente uma das frases mais confusas ou insanas de todo aquele universo louco, ganha uma nova dimensão:

“... e a moral disso é: ‘seja o que você parece ser’... Ou, trocando em miúdos, ‘Nunca imagine que você mesma não é outra coisa senão o que você poderia parecer aos outros do que o que você fosse ou poderia ter sido não fosse o que você não tivesse sido parecido a eles ser de outra maneira”

Através da memória, resgatamos essa presença na mente dos outros, portanto, nos damos conta da nossa existência. E a memória de Alice só irá ser provocada em Dinah porque entre as duas existe um afeto: a própria Alice passa a aventura recordando-se (chamando à memória) da sua gata querida. Nós só existimos nos outros - portanto, só percebemos nossa existência - quando provocamos afetos, que alimentam a memória e provocam a lembrança.

Ou, como diria a Duquesa: “... e a moral disso é, ‘Oh, é o amor, é o amor que faz o mundo girar’ ”.
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[O ensaio de A.Manguel chama-se "À mesa com o Chapeleiro Maluco" e está no livro do mesmo nome (pela Cia.das Letras) / A observação da Duquesa lembra tremendamente o último verso da Divina Comédia, quando Dante se refere a "l'amor che move il sole e l'altre stelle" / Agradeço ao pessoal do seminário PET-Direito (USP) pela inspiração].

domingo, 25 de abril de 2010

Que mundo é esse ?



"Sei que alguma coisa interessante sempre acontece – pensou – cada vez que eu tomo qualquer coisa; então vou só ver o que é esta garrafa". (Alice, 4)

"... mordiscou uma ponta do pedaço de cogumelo da mão direita para experimentar o efeito: num instante sentiu uma pancada violenta". (Alice, 5)


Gosto das modas. Elas nos permitem pensar em coisas que, em outras circunstâncias, passariam desapercebidas. O mega-lançamento do super filme em 3D (que ainda não vi) “Alice no País das Maravilhas”, serve como desculpa para revisitar o clássico de Lewis Carroll, bem como para entrar em contato com a vasta bibliografia a seu respeito. Aproveitando os lançamentos – e todo fuzuê editorial – provocado pelo filme, tenho agora em mãos duas edições caprichadas de Alice, a da Editora Zahar (que inclui as figuras originais de John Tenniel, bem como a segunda história de menina, “Através do espelho”); e a da Editora Cosacnaify (com tradução e comentário de Nicolau Sevcenko e gravuras por Luiz Zerbini).

Começando a leitura, descubro que jamais havia lido o texto original, mas apenas versões ou adaptações infantis. Além disso, há o peso da versão Disney em desenho animado, cujas imagens – que eu julgava esquecidas – me vêm à memória frequentemente ao ler as diversas cenas do livro. Mas, o que mais me chamou a atenção foi a riqueza da narrativa e a multiplicidade de leituras sugeridas.

Em primeiro lugar, percebo que Alice é uma personagem que se entedia. Primeira página: “Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer...”. Fugindo do tédio, Alice parte em sua aventura, que pode ser considerada uma busca. Alberto Manguel, leitor atento de Lewis Carroll, identifica na jornada de Alice uma semelhança com a busca de Ulisses na Odisséia. Em conversa com o gato Cheshire, já bem avançada a aventura, Alice pergunta sobre a saída, qualquer saída “desde que chegue em algum lugar”. E o gato observa que, nesse caso, tanto faz o caminho a ser tomado, lembrando do aspecto labiríntico da busca de Alice (sobre labirintos, veja o post de 22 de março).

Certamente a busca de Alice é nada menos do que a busca de si mesmo. Ou seja, de sua identidade. Logo ao entrar na toca do coelho, marcando o início da sua jornada, Alice cai. Bem devagar, mas cai, e a perda do chão é uma metáfora forte demais para ser ignorada: trata-se da perda do referencial espacial mais básico. (Lembremos que no País das Maravilhas, o próprio Tempo tem um significado todo próprio, conforme o Chapeleiro Maluco revela a Alice em meio a um chá das 5 infinito). Aliás, os próprios pensamentos que passam pela cabeça de Alice durante aquela queda inicial sugerem uma tentativa de reafirmação de seu próprio eu: Alice observa atentamente e toca os objetos que vê durante a queda (guarda-louças, estantes de livros, potes de geléia – talvez buscando uma reconciliação com o espaço); Alice apela para a memória, lembrando de casa (e da opinião que teriam sobre ela, “corajosa” – é no âmbito do lar, ouvindo os pais, que a criança constrói sua primeira identidade) e lembrando de seus afetos (a gata Dinah, que “vai sentir minha falta essa noite”).

Já em meio às andanças pelo País das maravilhas, ou seja, durante sua busca, Alice cruza várias vezes com o questionamento explícito sobre sua identidade. Assim logo no começo da aventura, quando as coisas começam a acontecer de um jeito diferente, Alice pergunta: “Eu era a mesma quando me levantei esta manhã ?... Afinal, quem sou eu ? Ah, este é o grande enigma!”. Mais adiante, a lagarta pergunta, “Quem é você ?” e, no mesmo diálogo, Alice disse que está mudada depois que caiu no País das Maravilhas, e explica: “Não consigo me lembrar das coisas como antes”. Sem memória, como constituir uma identidade ? Diante da Pomba, ainda no mesmo capítulo, Alice, bastante “insegura”, balbucia: “Eu... eu sou apenas uma menininha !” Impossível maior precisão: “Com todas essas mudanças... nunca sei ao certo o que vou ser de um minuto para o outro”. Ou seja, ser implica em estabilidade, permanência. Criar hábitos. Alice não habita o País das Maravilhas, e essa é a fonte de sua insegurança, da perda do seu chão.

Porém, existe algo de tremendamente perturbador nessas mudanças aparentemente insensatas que ocorrem no País da Maravilhas e que o aproximam do nosso mundo. Pois todas as esquisitices e estranhas mudanças que ocorrem no País das Maravilhas seguem uma racionalidade. Apenas não estamos habituados com ela. O gato Cheshire argumenta racionalmente para provar aquilo que foi identificado como sua “loucura”. Diz ele: “um cachorro rosna quando está zangado e abana a cauda quando está contente. Oras, eu rosno quando estou contente e abano o rabo quando estou zangado. Portanto, sou louco”. Quod erat demonstrandum. O mais perturbador no diálogo não é a argumentação racional do louco provando sua suposta loucura, mas sim o fato de que por trás do comportamento pouco convencional do gato está um método, uma razão. O gato não rosna e abana a cauda aleatoriamente, há causas específicas que provocam cada um desses atos. Da mesma forma, quando a Lebre lhe oferece “mais chá”, Alice responde: “Como não tomei nenhum, não posso tomar mais”. Ao que o Chapeleiro Maluco, com lógica impecável, argumenta: “Você quer dizer que não pode tomar menos; é muito mais fácil tomar mais do que nada”.

E aqui chegamos ao grande encanto do livro. Criando um País das Maravilhas cuja racionalidade resulta em episódios e comportamentos aparentemente loucos, Carroll põe em jogo uma reflexão sobre o nosso próprio “país”. Pois o nosso mundo também está fundado em um certa racionalidade, que instrui os nossos atos, constrói a nossa lógica. E muitas vezes o resultado de nossa ação racional aparece como loucura e nós simplesmente não enxergamos essas loucuras, de tão bem disfarçadas de razão que elas estão.

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quinta-feira, 15 de abril de 2010

Lugares malditos 2



O Museu Brasileiro de Esculturas – MuBE – foi inaugurado em 1995, uma placa comemorativa afixada em uma de suas paredes relembra a efeméride. A placa traz o suspeitíssimo nome do prefeito de então, ele, Maluf, e só isso já bastaria para caracterizar o Museu como um lugar maldito. Lembro da herança maldita formada por tudo que carrega o tenebroso rótulo de “obra de Maluf”, e que provavelmente resulta em dinheiro sujo circulando por aí em paraísos fiscais. Mas, sejamos justos, a obra toda foi demorada, tendo se iniciado em 1987 na gestão de, vejam só, ninguém menos que Jânio Quadros. Apesar desse passado, aproveitei a quinta-feira de sol para uma visita ao local.

Impossível não comparar essa visita com meu o último safári cultural, o Parque da Juventude no Carandiru. Semana passada chovia, fui parar nos espaços abertos e verdes da Zona Norte. Hoje fazia sol, me enfurnei naquela espécie de fortificação de concreto armado, naquele verdadeiro bunker da Chancelaria que é o prédio do MuBE.

Logo na chegada, o susto habitual: os onipresentes bancos de concreto sem encosto, totalmente refratários ao uso e estranha preferência dos arquitetos brasileiros. A arquitetura do prédio, orgulhosamente assinada por Paulo Mendes da Rocha – moderno que só ele – é exemplo típico daquilo que já chamei de “arquitetura de maquete”, tão bem apropriada para as linhas modernistas: empilhamento de volumes geométricos simples, que ficam lindos em uma maquete mas que, em escala humana, tornam-se francamente repelentes. Fico imaginado figuras como Jânio e Maluf, cuja competência em estética acredito ser duvidosa, contemplando a maquete e achando o máximo.

Caminhando pelos espaços planos de concreto aparente da nossa Linha Maginot paulistana, uma surpresa: no Museu Brasileiro de Escultura praticamente não há esculturas ! Excetuando-se algumas obras doadas pelos artistas, a sensação de abandono é total. Descendo nas entranhas do nosso U-bootbunker da Avenida Europa, encontrei alguns espaços com exposições temporárias de pintura. Em primeiro lugar, os quadros de um certo Carlos Araújo, inspirados em trechos bíblicos. Que se louve a coragem de alguém pintar uma Anunciação da Virgem Maria nos dias de hoje, mas o recinto todo da exposição era francamente apelativo: musiquinha sacra ao fundo, dezenas de fotos de Kim Phuc espalhadas pelo chão, em meio a lâmpadas acesas representando velas. Para quem não sabe, Kim Phuc é a famosa menina mártir da Guerra do Vietnã. Mais adiante, cruzei com uma exposição que reunia quadros surrealistas e abstratos de um mau gosto tremendo, ou, no mínimo, de uma irrelevância atroz. Finalmente, procurando um banheiro nos meandros de concreto da nossa Flakturm tropical, me perdi por um instante em espaços vazios, rampas desoladas e janelas que não iluminavam. Um laguinho de águas sujas com carpas infelizes completava o clima geral de desolação.

E a maldição do lugar continua. Atuando em terreno público e com prédio devidamente bancado pelo Município, o MuBE tem sido administrado pela Sociedade de Amigos do Museu. Não se estranhe essa nomenclatura, tal tipo de sociedade é bastante comum por todo mundo, como forma de administrar instituições culturais. A própria Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), de competência indiscutível, tem (ou teve) a sua sociedade de amigos. Pois os amigos do MuBE (ou “turma do MuBE”, como me parece mais adequado chamá-los), fracassou monstruosamente nos últimos muitos anos na tarefa mínima que deles se esperava: a montagem de um acervo para o Museu. E, o que é pior, nesses anos todos o espaço do Museu (não esqueçam, concessão pública) tem sido utilizado freqüentemente para todo tipo de festinhas e festonas, corporativas e particulares. O aluguel, obviamente, vai para o bolso da turma do MuBE, agora transformado em um verdadeiro Museu Brasileiro de Eventos.

Há uma pendência jurídica por aí. Ao que parece, o prefeito pediu a devolução da concessão, na prática, o afastamento da “turma”. A pendência vai se arrastando e, enquanto isso, contemplanos melancolicamente o nosso Luftschutzbunker do Jardim Europa.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Lugares malditos


Toda cidade tem seus lugares malditos, onde a memória de uma grande catástrofe ou de muitos mortos sobrevive, em que pese a total remodelação do local. Em Paris, meu lugar maldito favorito é o aprazível parque Buttes-Chaumont, onde as criancinhas brincam alegremente sem saber que lá era o cadafalso da cidade, onde enforcados ficavam pendurados durante semanas, onde um poço fundo servia para despejar cadáveres e, eventualmente, algum vivo indesejável. Em São Paulo, temos o agradável Parque da Juventude na Zona Norte, construído no local da antiga penitenciária do Carandiru. Lembremos que em outubro de 1992 uma rebelião no presídio terminou com a invasão do complexo pela Polícia Militar e a morte de nada menos que 111 presos (muito embora já tenha ouvido pelo menos um relato de pessoa que esteve presente – um repórter – e que jura que o número de mortos foi bem mais elevado).

Seja como for, o tempo estimulante da quarta-feira (nublado, chuva fina) fez com que eu me deslocasse até o Parque para conhecê-lo. Descendo do metrô, quase um susto: falta de árvores (ou árvores mirradas) e bancos de concreto, daqueles sem encosto, quase que à prova de conforto. Mas, a primeira má impressão foi logo se dissolvendo. Entrando mais dentro no Parque, cruzei com uma paisagem agradável de grama impecavelmente cuidada em terreno suavemente ondulado, tendo como fundo uma mata densa, de árvores antigas [foto]. Descanso para os olhos após a vista agressiva da cidade no entorno. Pelos caminhos, bancos de madeira, com encosto !

Ainda caminhando, me deparei com o súbito surgimento do inesperado, aquelas pequenas surpresas que têm o poder de tornar tão agradável uma caminhada. Uma estátua simpática, uma estrutura de ferro em meio a árvores altas, uma ponte sobre o córrego (infelizmente fedido). Claro, notei uma freqüência estranha no Parque. Ninguém corria pelos gramados, ninguém jogava bola, os brinquedos infantis (de madeira) estavam às moscas. “Onde estão as crianças ?”, pensei. Talvez fosse o tempo frio. Mas havia pessoas no parque: casais jovens esgueirando-se entre as árvores, homens adultos caminhando sozinhos e de forma suspeita (imaginei que fosse a habitual fauna de tarados que sempre freqüenta parques. Depois pensei, “Ops, sou um homem adulto caminhando sozinho pelo Parque !”)

Notei que o Parque era intensamente vigiado: PMs, Guarda Metropolitana, seguranças privados. De fato, alguns personagens simplesmente tenebrosos apareceram pelo caminho, imaginei que sem policiamento, aquele Parque seria um local assustador. Triste, mas essa é toda tragédia de nossas cidades: aqui jamais pode ser criado um espaço público agradável. Uma vez construído, esse espaço será transformado em residência por moradores de rua, em seguida atraíra foras-de lei em geral, incluindo aquela turma de pixadores que acha "bonito" a transgressão (e usa isso como justificativa para escrever o nome da crew nos muros, u-hu, estamos mudando o mundo ! Mais um espaço "liberado" da sociedade burguesa hipócrita !). Em seguida, vêm os traficantes, violência, abandono, degradação... quantas vezes não vimos o filme ?

Seja como for, reconheci o local em uns 15 minutos e me dirigi para o atraente e recém construído prédio da Biblioteca de São Paulo, em cuja Sala de Leitura eu pretendia passar algumas horas agradáveis. Levei até meu sac aux livres à tiracolo, com o livro do Giannotti sobre Marx, o quarto volume da História da Vida Privada e o Dance, dance, dance, romance de Murakami, meu autor pop preferido. Porém, ao entrar na Biblioteca, uma surpresa: eu deveria deixar meus livros no guarda-volumes. Justificativa singela do funcionário:

- É proibido entrar com livros na Sala de Leitura.

Lugar maldito. Saí de lá e pixei na primeira parede F*U*C*K*T*H*E*S*Y*S*T*E*M, com letras góticas.

sábado, 3 de abril de 2010

O mundo como ele é (ou: assépticos e insossos)



Os bárbaros estão à solta pela Europa; a devastação da epidemia faz igualmente vítimas; a tirania dos cobradores de impostos pilha os fundos e as fortunas escondidas nas cidades; os soldados se esgotam. Uma fome tão atroz e abateu, que sob seu domínio os homens devoraram a carne humana; mães degolaram seus filhos, os cozinharam, e com seus corpos saciaram a fome. Os animais, acostumados aos cadáveres daqueles que pereciam pela fome, pelo ferro, pela epidemia, matam os que ainda estão vivos: não contentes com a carne dos cadáveres, atacam a espécie humana. Assim, as quatro pragas do ferro, da fome, da epidemia e dos animais devastam o mundo inteiro, e as previsões do senhor pelos seus profetas se realizam.


Para muitos, essas palavras soam familiares: trata-se de um trecho das crônicas de Idácio, bispo de Aquæ Flaviæ, cidade romana na península ibérica. Escrevendo no século V, Idácio presenciou os momentos finais do Império Romano, notadamente a invasão dos bárbaros suevos e seu estabelecimento no norte da península. Na suas crônicas – e particularmente no trecho acima – chamam atenção os aparentes exageros, por exemplo, ao falar de mães que degolaram e cozinharam seus filhos para aplacar a fome. Além disso, o bispo fala de animais atacando a espécie humana, afirmação que causa espanto se lembrarmos que ele vivia em uma cidade, e os tipos de animais com que ele cruzava (cães ? gatos ? galinhas ?) não me parecem muito ameaçadores.

A meu ver, o bom bispo até era bem intencionado: ele apenas descrevia o mundo de forma a adaptá-lo a suas, digamos, estruturas mentais. Impregnado de religiosidade e observando o que parecia ser o fim dos tempos (afinal, o poderoso e aparentemente inabalável Império Romano desmoronava), Idácio ajustava a realidade que via à narrativa bíblica que tinha na cabeça, e cuja verdade era inquestionável. E essa narrativa falava do fim dos tempos, da realização das profecias. Oras, ao final da Bíblia, no livro da Revelação ou Apocalipse, o apóstolo João descreve as visões que teve sobre o fim dos tempos, incluindo a terceira visão, onde aparecem os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (representando a Guerra, a Fome, a Epidemia e a Besta). Difícil para Idácio não julgar que presenciasse o Juízo Final, pois o Império desmoronava diante da Guerra (as agressivas incursões de povos bárbaros), que deixava um rastro de Fome e Epidemia (em corpos fragilizados pela ausência de alimentos). Para completar, faltava a Besta, sob a forma dos animais, e Idácio forçou a barra para adequar seu comportamento à profecia bíblica que tinha na cabeça.

Nossa tendência é rir de Idácio, talvez com um sorriso condescendente: “Nossa, as pessoas eram tão bobinhas na Idade Média !” Ou então: “Olha só o que a religião faz com a cabeça das pessoas, impede que elas vejam o mundo como ele realmente é !”. Mas, me pergunto, será não fazemos o mesmo ? Será que não torturamos o mundo o tempo todo, para que ele se revele conforme nossas estruturas mentais ? Temos essa estranha dificuldade de enxergar as coisas “como elas realmente são”, a tal ponto que deveríamos colocar em cheque a própria existência de coisas “como elas realmente são”. Talvez as coisas não “sejam”: as coisas apenas “são” a partir da nossa elaboração. Ou seja, nossa percepção faz parte do Ser das coisas.

A cada um, suas idiossincrasias O que me interessa aqui é apenas contrapor, em linhas gerais, a mentalidade de um bispo Idácio – que só consegue ver o mundo a partir da janela da Igreja – e a nossa, impregnada de racionalidade e cientificismo. Essa nossa janela ou filtro técnico-científico se manifesta, por exemplo, na crescente dificuldade que temos em lidar com nuances de comportamento. Sempre uso como exemplo a melancolia, verdadeiro estado de espírito em extinção, substituída pela depressão. Diagnosticada a depressão (ou seja, uma vez construído um discurso científico sobre a depressão), ela se converte em doença, da qual fugimos. O resultado não é uma vida mais sadia, mas sim viver com medo. Hoje, qualquer tristeza é sintoma, qualquer melancolia é suspeita – quando na verdade tristeza e melancolia são apenas estados de espírito, muito humanos, e apenas isso.

Tenho a intuição de que a depressão causa um efeito colateral chamado “medo a depressão” e que, por sua vez, é fator causador de depressões. Me aprece um escândalo a forma como a medicina lida com isso. Seja como for, em outros tempos o melancólico escrevia um samba (“pois o samba é tristeza que balança...”), enquanto hoje ele busca um médico, tremendo diante do fantasma da depressão.

No mesmo registro, certos estados de alegria ou euforia, que costumam ser descritos pelo discurso científico como resultado da liberação de endorfina na corrente sanguínea. Claro, a partir de uma descrição como essa, para que tentar ser alegre, se os efeitos da alegria podem ser provocados quimicamente através da ingestão de uma substância sintética ?

Mas o caso mais sério ainda me parece o das doenças degenerativas cerebrais. Antigamente, um velho ficava “gagá”; hoje em dia, uma pessoa idosa tem o mal de Alzheimer. Sem dúvida, a palavra “gagá” pode trazer algo de depreciativo, porém nos remete a um universo familiar, a uma linguagem de criança. Talvez na sua origem, a palavra “gagá” tenha sido usada pela primeira vez por um neto referindo-se ao avô. Já a palavra “Alzheimer” tem algo ao mesmo tempo tenebroso e áspero, na sua cientificidade germânica. O simples uso da palavra “Alzheimer” causa apreensão, nos remete a um mundo de corredores brancos, médicos de jaleco, cheiro de éter e, finalmente, de morte.

E aqui chego onde queria. A preponderância do discurso científico e a consequente multiplicação das patologias não apenas define a forma como vemos o mundo, mas também resulta:

1 – na ingestão em larga escala de substâncias químicas, cujos efeitos finais mal conhecemos com exatidão.
2 – na Grande Internação, uma vez que TUDO pode (e deve) ser tratado. Aqui volta o exemplo dos idosos: o que é melhor para o paciente, ser tratado de Alzheimer no hospital asséptico ou permanecer no lar junto a pessoas queridas (como o neto que o chama de gagá) ?
3 – no estreitamento do âmbito do normal. Atualmente, a normalidade torna-se impossível, pois todos temos um desvio (e todo desvio foi classificado). Além disso, a plena normalidade torna-se não apenas inalcançável, como também insossa: não existe nada mais chato que o normal.

E esse é o nosso mundo. Diante de cada nuance de comportamento há uma patologia, diante de cada problema um remédio. E o resultado final é nada menos que o empobrecimento da experiência.