terça-feira, 30 de setembro de 2008

Ainda o tédio


Se contei direito, Fernando Pessoa dá nada menos que 35 definições de tédio no Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Escolha a sua.
1. angústia metafísica disfarçada;
2. correspondência desperta da sonolência do vadio;
3. grande desilusão incógnita;
4. poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida;
5. pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar;
6. sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir;
7. não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer;
8. sofrer sem sofrimento;
9. querer sem vontade;
10. pensar sem raciocínio;
11. fel de inércia;
12. cansaço de si;
13. sensação de vácuo;
14. fome sem vontade de comer;
15. insatisfação da alma íntima por não lhe termos dado uma crença;
16. desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino;
17. a estrada sem nada de não saber sentir;
18. falta de uma mitologia;
19. perda, pela alma, de sua capacidade de se iludir;
20. falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade;
21. desolação sem lugar,
22. naufrágio de toda a alma;
23. aborrecimento do mundo;
24. mal-estar de estar vivendo;
25. cansaço de ter vivido;
26. sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas;
27. aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não;
28. mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo;
29. cansaço não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, (e) da eternidade, se a houver, (e) do nada, se é que ele é a eternidade;
30. sensação física do caos, e de que o caos é tudo;
31. prisão em liberdade frustrada numa cela infinita;
32. possessão por um demônio negativo,
33. embruxamento por coisa nenhuma;
34. isolamento de nós em nós mesmos;
35. reflexo maligno de bruxedos de um demônio das fadas.

sábado, 27 de setembro de 2008

Bolsa e tédio


Pode existir algo mais entediante do que uma quebra na Bolsa de Valores ?

Nos últimos anos (ou pelo menos até onde vai minha memória econômica), acompanhei um número expressivo de quedas na Bolsa. Quase sempre eram anunciadas de forma apocalíptica, prenunciando tempos sombrios, seja pela imprensa ou por acadêmicos subitamente trazidos à luz dos holofotes. Nesses momentos, os economistas sempre anunciam os diagnósticos mais desbaratados, o que nos leva a refletir seriamente sobre o estranho caráter da ciência econômica: a única das ciências humanas que tem sua atividade focada para a nebulosa tarefa de prever o futuro. Aliás, essa constatação acaba pondo sob suspeita o estatuto “cientifico” da disciplina, aproximando-a da astrologia ou das artes ciganas em geral. Felizmente a História já deixou para trás esse vício, não sem antes derramar muito sangue. Ao Anjo da História, um brinde.

Lembro de quebra da Bolsa de Nova York em 1987, quando o índice Dow Jones despencou cerca de 20%. Como comparação, no auge da Crise de 29, a maior baixa diária do índice foi de 12%. Em seguida, ocorreram as “mini-quebras” da Bolsa de Nova York em 1989 e 1997, seguidas do colapso após o 11 de setembro de 2001. Todas essas crises atingiram o Brasil e trouxeram um princípio de pânico econômico. Da mesma forma, as sucessivas crises dos chamados mercados emergentes, como a crise mexicana de 1994, a asiática ou tailandesa de 1997 e a russa de 1998. Além das crises externas que atingiram o Brasil, lembro dos afamados “pacotes” econômicos, que criaram sua cota de caos econômico e queda nas Bolsas locais. Rapidamente, cito os planos Cruzado (1986), Bresser (1987), Verão (1989), Collor (1990) e Collor II (1991). A isso acrescento a lembrança da iminente vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2002, que provocou nada menos que o colapso cambial, com a meteórica desvalorização do Real e os efeitos nefastos de sempre na Bolsa.

Em outras palavras: somente na minha memória, o mundo acabou em 1986, 1987, 1989, 1990, 1991, 1994, 1997 (duas vezes), 1998, 2001, 2002 e, agora, em 2008. Haja Juízo Final. Assim não há alma que agüente.

Aqui não há otimismo. Dizer que essas quebras na Bolsa são fogo de palha não quer dizer que as coisas vão bem, mas que a instabilidade é parte integrante do sistema. A quebra periódica do sistema financeiro é fundamental para que o sistema financeiro continue existindo. Além disso, após a Crise de 29, foram criados mecanismos de controle e intervenção (de matriz keynesiana) que permitem rápido combate às crises, cujos efeitos mais agudos são deixados para trás em cada vez menos tempo. Enfim, que essa reflexão não seja encarada como algum tipo de previsão, mas, sobretudo, que sirva pelo menos como uma advertência contra os profetas do apocalipse: aqueles que partem da leitura apressada dos cadernos de Economia dos jornais e ficam se arvorando ares de sabedoria ao antecipar o futuro. Um grande TPXI! para todos eles.

domingo, 21 de setembro de 2008

Ditos e Escritos

Ao final de uma das aulas da semana passada, fui procurado, como de hábito, por alunos cheios de dúvidas, angústias e incertezas. Um deles me disse ter lido um poema de Cecília Meireles que o fez lembrar de algo que pensou ao ler o blog e o obituário de Ponticelli. Estendeu-me uma cópia, que segue abaixo:

Os presentes dos mortos

Os presentes dos mortos
arrastam-se ternamente
no encalço dos vivos

Usam um silêncio diferente
pousam de um modo peculiar

Como também morreram um pouco,
têm uma feição pálida e ausente.
Comanda-os de longe esquiva estrela.

Como, porém, não morreram de todo,
aproximam-se com branduras de fantasma,
e a cada instante se detêm,
medrosos, por se encontrarem em nossa frente.

Somos tão bruscos, tão agressivos!
É tão insensível aos delicados modos de morte
a condição do áspero ser vivente!

(Cecília Meireles – Mar Absoluto)

Algo me chamou atenção nesse episódio. Primeiro, o fato de que não tenho a mínima idéia do alcance do discurso, ou seja, de como as pessoas lidam com aquilo que ouvem ou lêem. Coisas são ditas, coisas são escritas... e daí ? O que acontece com essas palavras ? Quais efeitos elas provocam ? De Górgias (séc.V a.C.): O Discurso é um senhor soberano que, com um corpo diminuto e quase imperceptível, leva a cabo ações divinas. Na verdade, ele pode tanto deter o medo como afastar a dor, provocar a alegria e intensificar a compaixão. Sem achar que meu discurso tem todo esse alcance, ainda assim me pergunto: que tipo de pensamento minhas palavras despertam ? Também me chamou atenção o fato de que sequer sei o nome do menino que me entregou o poema e que, de alguma forma, ficou tocado pela leitura do obituário de Ponticelli. Assim como não sei o seu nome, ignoro o nome de muitos dos seus colegas. Em outras palavras: enuncio um discurso que irá provocar um efeito ignorado em pessoas anônimas. Isso tem algo de assustador.

Voltando à Primeira Guerra Mundial, lembro que após o Armistício multiplicaram-se por toda a Europa os monumentos ao “soldado desconhecido”. A idéia, ao que parece, surgiu em Verdun, quando dezenas de milhares de soldados simplesmente desapareceram sob o dilúvio do fogo de artilharia, reduzidos a poeira. Sem direito a um túmulo individual, não seriam relembrados como heróis, mas foram capazes de sacrifícios tão grandes quanto os outros. Impossível não fazer alguma relação com a multidão de alunos anônimos que passam pelas salas de aula e que se envolvem na proposta do curso de História, e se dedicam e, ao final do ano, seguem para suas carreiras acadêmicas levando sabe-se lá o quê da experiência do cursinho. Aproveito a poesia de Cecília Meireles, que me foi entregue de forma tão delicada e atenciosa, e dedico-a a todos esses “Alunos Desconhecidos”.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Lazare Ponticelli (1897 - 2008)


Falecido no dia 12 de março de 2008. Segue um trecho do Obituário publicado na revista The Economist (edição de 22-28 março):

O trato da memória é algo ao mesmo tempo sólido e solene. Placas na parede são inauguradas; monumentos de pedra são construídos em praças; a cúpula dos mausoléus se ergue tijolo acima de tijolo por sobre as cidades. Mas o trato da memória é também algo tão ilusório e instável quanto a água ou a névoa. Fotografias amareladas escorregam para trás das gavetas; as vozes se desvanecem; e as últimas lembranças dos mortos deixam de existir, por sua vez, deixando apenas aquilo que Thomas Hardy chamou de “o mar engolidor do esquecimento”.

A aproximação da morte de Lazare Ponticelli causou algo como um pânico na França. Esse “último dos últimos” foi, por algum tempo, o único homem no país que lembrava da Primeira Guerra Mundial por ter nela combatido. No subúrbio parisiense de Kremlin-Bicêtre, onde vivia, havia um monumento aos mortos da guerra como em quase todas as comunidades na França. Mas, o mais importante, havia o Ponticelli que, até o seu 111º aniversário, aparecia todo ano no dia 11 de novembro, com o seu quepe achatado e casaco marrom, recurvado e com os olhos brilhantes, tendo dificuldades em lidar com os poucos passos necessários para estender seu pequeno ramo de flores na direção do monumento. Quem mais se impressionava e observava seriamente a cena eram as crianças, para quem – caso quisessem – ele contaria suas histórias.

Sucessivos presidentes da França empenharam-se em honrar Ponticelli. Era uma forma de conter todas as outras sombras que ele representava: os 8,5 milhões de trabalhadores, camponeses e pessoas comuns que, em capacetes pontudos de aço e capas folgadas, defenderam suas pátrias como soldados no Fronte Ocidental, entre 1914 e 1918. Jacques Chirac sugeriu um funeral oficial e um túmulo no Panteão, ao lado de Rousseau e Voltaire. Nicolas Sarkozy propôs uma missa solene nos Invalides. Ponticelli não queria nada disso: nada de desfile, nada de barulho, nada de algazarra. Ele estava feliz com sua importante medalha, a Legião de Honra, que ele guardava com suas outras medalhas em uma caixa de sapato. Mas ele sabia muito bem que só atraía tanta atenção por ser o último.

O que aconteceu com os outros ? Por exemplo, os carregadores de maca na Argona, que lhe disseram que não iriam sair da trincheira porque estavam com medo do fogo alemão. O homem que ele ouviu gritando na terra de ninguém, apanhado no arame farpado e com as pernas rasgadas, gritando para ser socorrido, até que Ponticelli corresse até ele com alicates e o arrastasse de volta para a trincheira. Ou o soldado alemão em quem ele tropeçou na escuridão da terra de ninguém, já ferido e aguardando ser morto, que, em silêncio ergueu seus dedos para dizer que tinha dois filhos. Ou os companheiros que o ajudaram, por ele não saber ler nem escrever, a manter uma correspondência com a sua ama de leite da infância. Ou os quatro colegas que o seguraram, após a batalha de Pal Piccolo, enquanto o médico do exército arrancava de seu pescoço um pedaço de projétil, já provocando gangrena.

A cada nova salva de artilharia, ele disse, todos esperavam o pior. E, como único consolo, os soldados se diziam um ao outro: “Se eu morrer, você irá se lembrar de mim, não vai?” Ponticelli sabia que tinha o dever de lembrar. Eles eram seus camaradas, os rapazes, uns sujeitos: rostos e não nomes. E agora que ele se foi, esses rostos perderam a última coisa que ainda os mantinha na terra (...)

The Economist tem a estranha fama de ser uma revista "sisuda". Pelo menos é com essa palavra que ela costuma ser citada pelos editoriais da Folha de São Paulo. Na verdade, trata-se de revista de humor refinado (porém britânico: quase tudo fica nas entrelinhas ou se limita a discretas ironias) e capaz de acessos emocionais como o do Obituário de Ponticelli.

Sobre o soldado francês: seu sobrenome indica uma outra nacionalidade. De fato, em 1914, o italiano Ponticelli, ainda com 16 anos, mentiu sobre a idade para se alistar na Legião Estrangeira. Ao final da guerra optou pela nacionalidade francesa.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
PS: Meu avô Giulio Dorigo (1900-1982) foi operário na construção de trincheiras no Fronte Alpino da Primeira Guerra Mundial, onde esteve sob fogo inúmeras vezes. Ao completar 18 anos, tornou-se soldado do Exército Italiano e, curiosamente, foi enviado para a retaguarda para treinamento e designado a funções administrativas, não chegando a combater de fato.

Meu tio-avô Maurice Bourgeois (1896-2002) era tenente em 1914 e participou de toda a guerra como oficial do Exército Francês, destacando-se na batalha de Verdun onde ganhou a Legion d’Honneur. Ferido duas vezes e feito prisioneiro, tonton Maurice permaneceu nas Forças Armadas chegando a ser general anos depois. Viveu até os 106 anos de idade e presidiu a Ceux de Verdun, Associação dos Ex-Combatentes de Verdun. A Associação foi extinta quando de sua morte !

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Wagner, Strauss e Stravinsky


Ainda sobre a aula de 9 de setembro: a idéia de que o sacrifício ritual (a morte que traz a vida) é uma síntese desse sentimento agonístico da belle époque, que oscila entre a valorização da morte (ilustrada no "crepúsculo" de Wagner) e da vida (ilustrada pela "aurora" de Richard Strauss), partiu de uma leitura do livro "A Sagração da Primavera", do historiador Modris Eksteins. O título do livro já antecipa sua abordagem. É dele também a aproximação entre a dança e a guerra, que expliquei como experiências dotadas de forte caráter de "presentidade".

No fin-de-siécle passado, Nietzsche (sempre ele) fez sua própria leitura da tensão morte/vida: a síntese se encontra na doença, metáfora empregada muitas vezes em sua obra como referência não só a decadência, mas a uma possibilidade de cura ou "renascer". (Lembre de outras metáforas nietzscheanas no mesmo teor: a corda estendida sobre o abismo, etc. Aliás, o título desse blog tem algo a ver com esses estranhos estados de suspensão entre uma coisa e outra). Em 1924, o escritor alemão Thomas Mann publicou um catatau de 1200 páginas chamado A Montanha Mágica, romance que incorpora e ilustra a metáfora nietzscheana de doença.

Sobre o Crepúsculo dos Deuses de Wagner.




Em alemão, Gotterdämmerung, uma das quatro partes do ciclo O Anel dos Nibelungos. O trecho usado em aula (9 de setembro) foi a "Marcha Fúnebre de Siegfried". Uma boa versão pode ser vista e ouvida em http://www.youtube.com/watch?v=20RldhK9354

O Bayreuth Festspielhaus foi construído por Wagner exclusivamente para apresentação das suas óperas, e inaugurado em 1876 para a apresentação completa do Anel dos Nibelungos (em cinco dias). Uma das características da sala é o local destinado à orquestra, um verdadeiro buraco na frente do palco. Para Wagner a idéia era não distrair a platéia da ação que se desenrolava no palco. Na prática, o resultado foi a criação de uma verdadeira "muralha de som", que se erguia dramaticamente do nada e envolvia os cantores, porém mantendo suas vozes em destaque

Nos anos 70, o Meat Loaf trouxe a idéia de "muralha de som" para o rock, com arranjos verdadeiramente wagnerianos, incluindo várias guitarras (elétricas e acústicas) tocando a mesma coisa ao mesmo tempo, ênfase nos vocais e músicas longas (de até dez minutos). Bandas contemporâneas de hard rock costumam empregar esse efeito.