quinta-feira, 6 de junho de 2013

Democracia e fetiche



A reflexão surgiu quando ouvi o notório Renan Calheiros defendendo-se de críticas, logo após ser nomeado pelos seus pares Presidente do Senado (ou será que foi quando ouvi Sarney defendendo-se após ser nomeado nem lembro mais o quê ?): “Aqueles que criticam o Legislativo estão atacando a democracia”. Existe uma variação desse argumento, que é usada quando a imprensa critica um governante: “A imprensa não respeita os representantes eleitos pelo povo, prova de que ela é inimiga da democracia”.

Nos dois casos, trata-se de manifestações do que chamo fetichização da democracia. Como em todo fetiche, trata-se de um desvio do conceito, que passa a ser entendido de forma parcial, através de apenas um dos seus aspectos. Na verdade, no fetichismo, as coisas são entendidas apenas como aparência daquilo que são. Enfim, uma ilusão.

Na fetichização da democracia, tudo se resume ao voto, e somente ao voto. Todo governo eleito é considerado democrático, independente de suas ações, “afinal, foi o povo que escolheu”. Na fetichização da democracia, tudo está pronto para a violência contra o Estado de Direito, e o Judiciário está sempre sob ameaça. Na fetichização da democracia, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara assume abertamente posições homofóbicas, e tudo bem pois foi escolhido por um Congresso democraticamente eleito. Na fetichização da democracia, esvazia-se qualquer projeto nacional de longo prazo: tudo se resume a preservar no poder o “democrata” de plantão. Na fetichização da democracia, faz-se necessário agradecer aos eleitores, àquela maioria que fez o favor de eleger o governo: o populismo torna-se moeda corrente. Na fetichização da democracia, tudo vale para “salvar a democracia”, inclusive a violência: em 1964, o golpe foi justificado como forma de defendê-la.

As origens da fetichização da democracia (alguns preferem o termo democracia formal) podem ser encontradas naqueles momentos em que a democracia passa a ser uma simples bandeira de luta, e como tal transforma-se em slogan. Refiro-me a longos períodos de ditadura, em que a democracia não é praticada e transforma-se em um ideal, tendo início seu esvaziamento de conteúdo. (Em nossos caso brasileiro, de fato, os últimos anos do Regime Militar assistiram à luta pela redemocratização; porém, na época, por acaso alguém se perguntava que democracia queríamos ? Não, pois o inimigo era tão formidável que era melhor concentrar as forças e aglutinar as massas atrás de slogans fáceis como “Diretas Já”).

O segundo ingrediente necessário para a fetichização da democracia é a fragilidade das instituições, tradicionalmente submetidas aos desmandos dos poderosos. Fragilizadas, podem ser assaltadas pelos que agem “em nome do povo”. Chega, cansei de aspas: falo aqui de Chaves na Venezuela, de Erdogan na Turquia, de setores do PT em torno do governo federal. Observe como coloco esse nomes ao lado de esbirros como Calheiros, Sarney & Feliciano, além de uma nada nada discreta referência ao Regime Militar.

Desconfio que a luta desde há muito deixou de ser entre socialismo e capitalismo. Suspeito que se trate cada vez mais de lutar pela civilização contra a barbárie. Voltarei a isso.

 

2 comentários:

Mariana Teresa Galvão disse...

Mais do que civilização contra a barbárie, tenho pensado muito sobre a questão do próprio indivíduo. Quanto temos a noção sistêmica da sociedade, com a visão da luta de classes, desigualdade social, desigualdade de oportunidades e os problemas estruturais gerais, esquecemos de olhar o próprio indivíduo. Psicologicamente, sabe? Temo em acreditar que, talvez, no fundo, o ser humano seja esse bicho individualista que só quer o seu quinhão e enquanto não tem, se organizar para lutar aquilo que lhe deveria pertencer...

Mas acho que esse pessimismo vem muito da visão imposta sobre como temos que fazer as mudanças sociais. A esquerda tem uma cartilha velha, e repetimos nos infinitos congressos um companheirismo vazio de sentido. Daí vamos repetindo bandeiras que, apesar de essenciais (democracia, por exemplo), de fato, ficaram meio esquizofrênicas. Como pensar a democratização? Como criar o debate? Como conscientizar as pessoas do exercício de cidadania e blá blá blá... Acho que é muito uma questão de discurso x realização. Falar de Lei Orçamentária é chato pra cara*** e ninguém entende nada, mesmo depois de um curso de Direito.

Daí vem aqueles que tem o manuseio da legislação, e de todo o saber-poder jurídico, econômico e político e faz o que quer. Deixa a coisa mais impossível de se entender, mais difíceis de se mudar... Por isso que eu acho que as instituições não estão frágeis, mas cada vez mais fortes, mais fechadas.

Daí volto pro ser humano, que é o bicho por trás disso tudo, sempre. De todas as instituições, de toda legislação, de todo discurso político.

Talvez esteja faltando uma análise REAL do contexto, ou seja, falta a gente parar pra olhar pro lado, pro Outro, de uma forma altruísta. Ver o que a gente precisa e ir construindo aos poucos. Falta exercício de alteridade, sei lá.

Mas todo esse discurso periga cair no assistencialismo, e todos sabem que devemos lutar pela mudança estrutural, e ninguém quer pelegar, né? E eu realmente acho que ajudar um não muda nada. Mas ignorar esse um, muda alguma coisa?

Pois é... é um ciclo sem fim.

Sentir disse...

Onde a gente clica pra curtir? rs.