domingo, 23 de junho de 2013

De-sa-ba-fo

 
I
 
 
Não tenho a menor dúvida de que um grande pecado das gerações mais velhas é enxergar o presente com a vista turvada pelo passado. A suposta sabedoria vinda da experiência muitas vezes faz com que o novo seja simplesmente falsificado, evitando o entendimento. Por outro lado, as gerações mais jovens tendem a enxergar o que para elas é novo com um evento inédito na história. Dessa forma, parte-se alegremente para a repetição o que já foi, incluindo todos os seus erros. Nos dois casos, tanto para os mais velhos (sábios que pouco sabem) quanto para os mais jovens (virgens caminhando para o estupro), acabamos repetindo o passado, seja praticando a farsa ou lamentando a tragédia.
 
 
Diante disso, lamento constatar: perante a história, somos todos “os mais velhos” ou “os mais jovens”, não há exceções. Contam-se nos dedos aqueles que conseguiram captar o presente do seu tempo, em toda sua plenitude e com toda sua singularidade.
 
 
Um dia, diante da crise, Jânio pareceu ser aquele que entendeu o seu tempo, pairando acima das desavenças e anunciando o novo. Era mentira. Anos depois, foi a vez de Collor surgir como o profeta do tempo presente, o messias da Nova Era. E foi uma farsa. A grande questão hoje não seria: como evitar uma tragédia ?
 
 
II
 
 
Por que escrevo ? Não tenho dúvida que, por alguma uma estranha perversão epistemológica, penso melhor por escrito do que falando. Se o enunciado do meu discurso falado costuma ser, ao mesmo tempo, consistente e convincente – chegando às vezes na proximidade do belo – é porque antes ele foi previamente elaborado como escrita. Quanto ao debate impromptu, sou uma catástrofe: os argumentos me escapam, os esquecimentos são recorrentes e o esprit de l’escalier está sempre à espreita.
 
 
Dessa forma, tento entender as coisas através da escrita, e compartilho minha busca aqui ou ali – por exemplo, neste blog. Porém, seria tolo em não reconhecer que também existe um componente de vaidade na escrita, ainda mais quando se assina um texto. Sempre cito um episódio ocorrido nos últimos anos de vida de Foucault, quando o filósofo desabafou: “No fundo escrevemos porque desejamos ser amados”. (Claro, o estágio avançado de sua doença fez com quem ninguém se atrevesse a fazer o gracejo inevitável: “Então porque não escreve mais fácil, para que mais gente possa entendê-lo e, portanto, amá-lo ?”).
 
 
Aproveito a citação de Foucault para usar mais algumas de suas palavras como justificativa: “a escrita serve para cortar”. Para ferir. De que adianta uma escrita complacente ? Se não utilizar o discurso para abalar o chão onde me apoio e, se possível, remover o solo sob meus pés, de que serviria tudo isso ? Por o dedo na ferida das certezas é deslocá-las constantemente, e é acreditar que os valores, esses sim, devem ser chacoalhados um atrás do outro. Às vezes é muito mais fácil quebrar vidraças que valores.
 
 
III
 
 
Quando vi as ruas ocupadas por um punhado – e no começo era apenas isso, um punhado – de gente defendendo uma causa que, na sua especificidade inicial parecia ser diminuta, quando vi os ”suspeitos de sempre” (grupos como “juventude maoísta”, “Coletivo Anarco-Punk do Baixo Augusta” etc.) ocupando as ruas, eu confesso,   assumo e não peço condescendência: não dei a mínima bola. Foi quando escrevi o texto do dia 13 de junho, pela manhã, e aproveitei para “usar a faca”, inclusive pensando naqueles que participaram da manifestação do dia 11 e em seguida divulgaram fotos no facebook posando de heróis do instagram.
 
 
No mesmo dia, no final da tarde, não apenas a polícia baixou o cacete de forma violenta – o que talvez se justificasse no caso de uma multidão de Hitlers – como também o movimento ganhou em tamanho e pauta reivindicativa: não mais os centavos, mas mudanças na política de transporte público, reestruturação da Polícia com abolição da PM, etc. Claro, aderi: é o momento em que se sai da situação de conforto para berrar. Seguiu-se a passeata de segunda-feira, após a qual escrevi o texto sobre a necessidade de enterrar 1968: contra utopias e propostas vagas (portanto contra o que hoje é chamado “coxinização” do movimento), pedindo uma inclusão para quem saiu as ruas pela primeira vez (tentando fugir dos slogans da velha política maniqueísta. Claro, muitos dos que saíram às ruas pela primeira vez nos dias seguintes começaram a fazer passeata cantando “Eu sou brasileiro/ com muito orgulho/ Com muito amor”, e aí já é forçar a amizade).
 
 
Mesmo com mais essa volta do parafuso, ainda tento encarar o que é novo e enxergar o presente destruindo as lentes do passado. Não sei se tenho sucesso e, em caso negativo, já disse, não espero condescendência. Encerro com uma de minhas citações preferidas:
 
 
Acho que só devemos ler a espécie de livro que nos ferem e nos trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, porque o estamos lendo ? Por que nos faz felizes ? (...) Mas nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, como a morte de alguém a quem amávamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para a floresta longe de todos.  Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós. É nisso que eu creio. (Franz Kafka, “Carta a Oskar Pollok”, 1904)

2 comentários:

Unknown disse...

Gostei da frase "Às vezes é muito mais fácil quebrar vidraças que valores." e de todo o texto.

Abraço

Mariana Teresa Galvão disse...

Muito bom!!!! Acho que foi o texto que mais gostei de ler aqui.

Beijos.