segunda-feira, 17 de junho de 2013

Enterrando 1968

 



A cena foi vista na passeata do dia 17 de junho em São Paulo: o jovem começou a entoar o refrão de “Para não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, um dos hits revolucionários de 1968, e ficou sozinho. Ninguém acompanhou. Foi quando tive a intuição de que as novas gerações finalmente não precisam mais viver – e, sobretudo, agir – sob a sombra de 1968.
 
Identifico um duplo legado de 1968. Em primeiro lugar, a reivindicação de utopias, conforme exemplificado pelos famosos slogans do maio de 68 francês (“A imaginação no poder”, “É proibido proibir”, “Sejamos realistas, peçamos o impossível”). Se por um lado tais slogans são de uma simpática beleza poética, e podem até sustentar manifestações durante, digamos, uma primavera, por outro são evidentemente de realização impossível. Ao invés de apontarem para um projeto, indicam tendências, que se perdem em meio a abstrações infinitas.
 
Em segundo lugar, o 1968 brasileiro trouxe a transformação da luta política em um confronto maniqueísta. A ditadura militar facilitava a tendência, sendo claramente identificada como um mal que deveria ser combatido, o que transformava todos os seus adversários no campo do bem. Uma vez que os líderes da luta contra a ditadura estavam no campo da esquerda, aguardava-se o surgimento do nosso Lenin, quem sabe na pele de um José Dirceu ou Vladimir Palmeira.
 
Oras, o 2013 brasileiro parte de uma reivindicação bastante concreta (contra o aumento das tarifas de ônibus urbano), e tira daí um verdadeiro projeto de mudanças. Se não revolucionárias, pelo menos capazes de transformar algo na vida das pessoas. Dentre outros, o que se ouve pelas ruas:
 
- transporte público de qualidade, incluindo preços seriamente subsidiados e mudança na ênfase das políticas públicas de transporte (que até hoje sempre beneficiaram transporte individual em prejuízo do coletivo);
- oposição à PEC 37, ao Estatuto do Nascituro, à “Bolsa Estupro”;
- reorganização completa das forças de segurança pública, incluindo a abolição das PMs.
 
Reinvindicações vagas e com alvos difusos (como “abaixo a corrupção”) mal se ouvem em meio ao barulho da multidão. Slogans anarquistas contra o “sistema” também se perdem. Ou melhor, acabam atrelados aos atos de violência repudiados pela ampla maioria dos que vão ás ruas. Acho.
 
Escrevo no calor da hora, e percebo os tradicionais partidos “de rua” (PSTU, PSOL, PCO) tem pouco espaço no movimento. O MPL se diz apartidário e, de fato, nas manifestações, a quantidade de bandeiras dos partidos ditos radicais é mínima. Hoje, lá pela tantas, ouvi brevemente um coro “Ei, PSTU, vai tomar... “ etc. Nesse sentido que entendo que o objetivo do movimento certamente não é implantar, sei lá, o centralismo democrático como primeiro passo para  a introdução da ditadura do proletariado. Enfim, até agora não apareceu nenhum candidato a Lenin em nenhum palanque. O que há de revolucionário é um desprezo generalizado à classe política, e mesmo quando vejo cenas de “vândalos” escalando o Congresso nacional, ameaçando o Legislativo carioca ou cercando o Palácio de Governo do Estado de São Paulo, não me incomodo muito.

Seja como for, 1968 deixa de projetar a sua sombra, que durante muito tempo impediu que se pensasse por conta própria, que se agisse por conta própria. Finalmente, 1968 está enterrado, e as gerações atuais não estão mais condenadas a repeti-lo, nem como farsa nem como tragédia.

2 comentários:

Unknown disse...

Um texto sóbrio em um momento volátil.

Adorei Gian
Arthur Borges

Clarissa L. disse...

Uma consideração, pouco sóbria:
meu medo não é de seguirmos sob a sombra de 1968, e sim de começarmos a seguir sob a sombra de 1964.