Há algo de pegajoso em alguns sorrisos natalinos, sempre desconfiei de manifestações emotivas com data marcada. Não estou falando do porteiro do prédio, do entregador de jornal, do trabalhador pessimamente remunerado que se agarra a qualquer possibilidade de ganho extra como um dos iracundos de Gustav Doré se agarra ao barco que atravessa o Estige, no canto VIII da Divina Comedia. Para esses, escravos, mais uma reverência ao nhonhô branco não faz diferença, afinal, o que é uma humilhação a mais para quem vive na senzala ? (claro, eles não precisariam exagerar usando os abomináveis chapéuzinhos de Papai Noel enquanto lidam com suas tarefas do cotidiano). Mas falo, sobretudo, da outra ponta, daqueles que não precisariam ostentar simpatia natalina, daqueles que presenteiam panetones às dúzias, daqueles que, da casa-grande, exibem seus sorrisos pegajosos por aí. Con piangere e com lutto, spirito maledetto ti rimani, ch’io ti conosco, ancor sie lordo tutto.
[Adam Gopnik, que escreve instigantes textos na versão americana da revista Piauí (a New Yorker), identifica autores de blogs como pessoas que tem ódio. Disse que Robespierre, se fosse vivo, teria um blog. Dante Alighieri, que já começo citando a torto e a direito, dizia que se escreve por amor. Não fosse Beatriz, não haveria a Divina Comedia. Disso tudo eu tiro que a escrita não é indiferente, neutra: se não depositamos nela a fúria e a paixão, o máximo que conseguimos é uma redação de vestibular.]
Sigo transitando entre o amor e o ódio para falar sobre a grave arte de dar presentes. Sinto-me até inclinado a propor uma “genealogia do presente”, não fosse esse título, por si só, carregado de ambigüidade metafísica. Sob o Natal, a origem do hábito de presentear é bem conhecida. Lembremos da cena: três reis vindos de longe atravessam o deserto para encontrar o menino, não medindo esforços para lhe oferecer presentes. Disse o Venerável Beda (673-735): “Belchior era velho de setenta anos, de cabelos e barbas brancas, tendo partido de Ur, terra dos caldeus. Gaspar era moço, de vinte anos, robusto e partira de uma distante região montanhosa, perto do mar Cáspio. Baltazar era mouro, de barba cerrada e com quarenta anos, partira do Golfo Pérsico, na Arábia”. Seguindo uma estrela, rumaram para o Ocidente até chegarem à casa do menino. Após a busca, a entrega: primeiro o adoraram e, em seguida, ofereceram à sua mãe os valiosos presentes que trouxeram, ouro, incenso e mirra.
A história toda remete a singularidade da situação: aquele que foi presenteado era nada menos que o Salvador, jamais existiu ou existirá alguém como ele. O desejo de presentear era tão forte que levou à travessia de um deserto. Finalmente, seguindo a Bíblia (Mt, 2, 10; por pior que seja a fonte, não tenho outra), ao chegarem com os presentes, “os três reis alegraram-se com grande e intenso júbilo”. O ouro é uma referência à riqueza material; o incenso, diáfano e perfumado, à espiritualidade; a mirra, usada para embalsamar cadáveres, à imortalidade.
Que diferença gritante em relação às nossas trocas apressadas de fim de ano ! Ou então, aos nossos afamados “amigos-secretos”, um tipo de celebração que se limita, muitas vezes, a um jogo – divertido, por certo – , mas que já não tem mais nada a ver com o ato de presentear. Imagino os reis magos fazendo um amigo-secreto: só um deles tiraria o papelzinho com Jesus. Os outros trocariam presentes entre si e seria até bom se fizessem uma lista com o que gostariam de ganhar, para que ninguém passasse pela roubada de dar ouro e ganhar mirra.
A tradição aponta para o ato de presentear, conforme praticado pelos reis magos, como um ato sério, que gera felicidade para quem oferece. Percebemos, com a tradição, que aquilo que deveria ser exaltado com presentes é a singularidade do presenteado, o fato de que se trata de uma pessoa única que merece nossa dedicação. Atravessar um deserto só é possível se temos em mente a pessoa a ser presenteada, se ela é a estrela que conduz. Muito difícil é o ato de presentear, pois deveríamos oferecer ouro, incenso e mirra. Hoje, quase sempre, aplacamos a consciência dando ouro (ao preço de um panetone), mas deveríamos oferecer como presente verdadeiro nada menos que a dedicação espiritual e a imortalidade à pessoa presenteada. Como incenso e mirra, deveríamos fazer com que o presente fosse um pedaço de nós, que pudesse ser levado junto, sempre. E a pessoa presenteada, por sua vez, só poderia ser a pessoa amada, a quem já adorássemos antes da entrega.
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Volto aos sorrisos pegajosos, lembro os iracundos de Dante. Pelas ruas, nos shoppings lotados, no trânsito infernal, nos aglomerados de consumo, o Natal desperta raiva e ódio. Enquanto maldizemos a necessidade de ir ao shopping nesses dias movimentados (portanto maldizendo a necessidade de presentear), vamos xingando com sinceridade as pessoas que se põem em nosso caminho. Às vezes acho que presenteamos com ódio e xingamos com amor.
Uma das poucas vantagens da época (observe que não cito várias coisas verdadeiramente prazerosas das festas: hoje escrevo com raiva), é que o convívio com a multiplicidade de sorrisos pegajosos acaba nos ajudando a lidar com eles ao longo do ano. Escolados pelo Natal, deveríamos perceber mais facilmente ao longo do ano os canalhas que se escondem por trás de cada sorriso, uma vez que esses, lamento, estão por toda a parte.
Como ratos.