24 de setembro, hora indeterminada, sobre o Atlântico
“Por favor, solicitamos a presença de um doutor. Comparecer com urgência à cabine do fundo do avião”, grita o alto falante à bordo do vôo TK0014 da Turkish Airways rumo à Istambul. Achei curioso que não chamaram um médico, mas um doutor. Será que podia ser alguém de Humanas ? Será que eles estavam necessitando de um doutor, digamos, em Filosofia ? Imagino a emergência: o doutor em Filosofia chega afobado na cabine do fundo e encontra um passageiro angustiado, sofrendo calafrios, que pergunta com a voz rouca (enquanto a aeromoça tenta afrouxar sua gravata): “Doutor... me ajude... será que a ontologia pura serve apenas para dar forma ao entendimento ?” E o filósofo responde – como se fosse um dentista chamado para atender um ataque cardíaco: “Xeeeeee, lamento, mas minha área é a Estética”.
24 de setembro, 18h34, Aeroporto Internacional de Istambul
A vingança turca. Ressentidos por não serem aceitos na União Européia, os turcos se vingam. A entrada na Turquia só é permitida mediante um visto que é emitido no próprio Aeroporto, quando se chega no país. Porém, para algumas nacionalidades o tal visto não é necessário. No Aeroporto, vejo uma fila enorme de italianos, alemães, franceses, espanhóis, todos eles aguardando o demorado visto. Como brasileiro, sou dispensado de visto, e passo ao lado da fila dançando um samba.
24 de setembro, 23h49, um
meyhane em Sultanahmet
O som das borbulhas de dezenas de narguiles sendo aspirados ao mesmo tempo. Cheiro adocicado de tabaco. Café turco, forte. Ao meu lado, dois turcos jogam gamão.
25 de setembro, 11h36, mesquita de Sultanahmet
É gratuita a entrada na famosa Mesquita Azul, aquela que foi construída diante de Santa Sofia para rivalizar em grandeza com o templo bizantino. Na saída, um funcionário pede uma contribuição em dinheiro para a manutenção da mesquita. Sensibilizado pela generosidade do ingresso grátis (e estimulado pelo pouco valor do dinheiro turco), deposito 5 liras na urna. Imediatamente, o funcionário me passa um recibo. Penso comigo: “Uma indulgência !” Agora, o paraíso islâmico é todo meu.
26 de setembro, 16h32, porta de hotel
Conversa com um turco: “O que você acha de Orhan Pamuk ?”. “Ah, aqui não gostamos muito dele, não. É um filhinho de papai, sua opinião é a da elite rica da cidade”. Tento argumentar que condenar a estética em função da origem social é um procedimento arriscado, e que seus escritos provavelmente irão sobreviver até bem depois que a atual estrutura de classes da Turquia mudar. E chamo atenção para o conceito de
hüzün (=melancolia), que passou a ser fundamental para se pensar a cidade desde que Pamuk o discutiu. “Isso é bobagem”, diz o interlocutor turco, “a tal
hüzün de Istambul não existe”. Como não existe ? Então eu posso dizer que o princípio segundo o qual “só Alá é Deus e Maomé é seu profeta” não existe só porque eu não acredito nisso ? Subitamente, o turco perde interesse na conversa.
26 de setembro, 19h05, entrada do mosteiro de dervixes de Mevlana
Nesses tempos tão corretos, me provoca um sorriso o cartaz afixado na entrada do mosteiro: “Este edifício NÃO é adequado para cadeiras de rodas”.
26 de setembro, 19h34, salão do mosteiro dos dervixes de Mevlana
Entra a banda dos dervixes, com seus longos chapéus cilíndricos. Em meio à solenidade de seus movimentos rituais de apresentação, subitamente lembro-me dos Keystone Cops, e sinto uma vontade desesperada de rir. Porém, logo começa a música e eu fico mudo de admiração. Quando os dervixes começam a rodopiar, chego próximo de um transe extático.
27 de setembro, 10h59, Palácio do Sultão (Topkapi)
A entrada do harem continua sendo um lugar assustador. Um beco estreito, ganchos para iluminação com lâmpadas de óleo, uma fileira de portas entreabertas com os aposentos dos truculentos eunucos, um corredor escuro no final. Era essa a primeira visão que as moças – seqüestradas em todo Império Otomano – tinham do palácio luxuoso onde passariam o resto de suas vidas. Sua maior aspiração: serem escolhidas como uma das “favoritas” e, com sorte, gerarem o príncipe herdeiro.
27 de setembro, 21h05, Sultanahmet
A comida de rua em Istambul é boa, aprendi isso da outra vez que aqui estive. Morrendo de vontade de comer um
kokoreç - uma espécie de
kebab feito com intestinos de carneiro - pergunto ao garçon de um dos muitos restaurantes de Sultanahmet, bairro dos hotéis ao lado de Santa Sofia: “Onde eu posso comer um
kokoreç?”. Assutado, ele me responde, “
Hayir ! Não,
kokoreç não tem mais ! É contra as normas de higiene da União Européia !”. Penso se seria elegante da minha parte lembrar que a Turquia não faz parte da União Européia, mas prefiro ser simpático. Depois de muito insistir, ele me passa, quase em segredo, um endereço em Beyoglu. E acrescenta em voz baixa: “Best
kokoreç in town !”. (
http://sampiyonkokorecci.com/)
28 de setembro, 9h45, rua Akbiyik